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De lixo e poesia

Of trash and poetry
Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Minus-value [auction]


    Há muitas imagens no mundo. Imagens que descrevem, comentam, interpretam ou até negam o que há no mundo. Imagens que, de maneiras diversas, inventam e constroem espaços públicos e íntimos. Imagens que, não faz dois séculos, eram quase todas desenhadas ou pintadas, e que, com frequência, levavam dias ou meses para ficar prontas. Velocidade de criação simbólica acelerada muitas vezes, contudo, com a invenção da fotografia. Desde que se tornaram instrumentos de fixar o que existe ou já houve em algum lugar, e o que se é ou já se foi em outro tempo, as imagens fotográficas dão contorno à vida que se convencionou chamar de moderna e marcam os traços de sua mudança incessante. São elas que servem, ademais, de testemunhas da transformação gradual de todos rumo a um fim certo e idêntico. Algumas fotografias têm cor, outras traduzem tudo em preto e branco. Algumas capturam o mundo à distância, outras quase roçam aquilo que escrutinam. Algumas são solenes ou nostálgicas, outras trazem rastros de festa e confiança. Em seu conjunto, constituem a memória partilhada de uma comunidade; isoladamente, contam ou produzem histórias únicas. 

    Mas talvez não caibam tantas imagens assim no mundo. Ao menos se for considerada a capacidade limitada que cada um tem de recordá-las, dada a natureza seletiva da faculdade humana de lembrar. Ou é possível que não haja mesmo vontade de retê-las todas. E não importa que as possibilidades de acolhimento físico de registro visual das coisas e das gentes sejam maiores agora do que jamais foram em outro momento, crescendo à medida que mais imagens são produzidas, ou quiçá antecipando-se a tal aumento. Em um tempo em que a produção digital de imagens multiplica sua presença em todo canto, fotografias são criadas e muitas delas nem sequer são vistas, guardadas para sempre antes mesmo que circulem, não cabendo nem mesmo tomá-las, por isso, como esquecidas. São imagens que, por supostamente serem repetitivas ou banais, tornam-se desnecessárias, sem função definida a desempenhar. Deixadas em arquivos virtuais para consulta futura, ou ali abandonadas em definitivo, servem como lembranças em potência de momentos e lugares, sendo mesmo, em ocasiões, descartadas como resto. 

    Ao tornar possível a geração de um número incontável de imagens passíveis de serem transformadas e combinadas à vontade, a tecnologia digital também nutre, paradoxalmente, um desgosto por reter fotografias em suportes resistentes a essas tantas possibilidades de mudanças. A ansiedade por criar e arquivar cada vez mais imagens termina por produzir, desse modo, desapego aos meios em que estas costumavam ser fixadas, e que lhes emprestavam sensação de permanência. Impressas em papel ou transformadas em diapositivos, imagens fotográficas são crescentemente desautorizadas como artigos que demandam a guarda, sendo com frequência lança das para fora e para longe do circuito fluido por onde transitam os registros atuais do mundo. Não são, todavia, abandonadas sozinhas a essa sorte, mas acompanhadas dos equipamentos analógicos com que por tanto tempo foram produzidas (câmeras dos mais diversos tipos e formatos) e dos suportes que serviam para organizá-las e visualizá-las (álbuns, molduras, monóculos, entre outros tantos mais).

    Fotografias impressas e objetos variados de feitura e de exibição de imagens são, assim, gradualmente destituídos de todo “valor de uso”, esquecidos ou simplesmente atirados fora, justamente por aqueles que, em algum momento anterior, atribuíam-lhes sentido simbólico e prático. E por carecerem de utilidade na ordenação corrente da vida privada ou pública, têm “valor de troca” também à beira do nulo, equiparável talvez ao de uma curiosidade, destinado ao mesmo fim de outras sobras do mundo: os mercados, as feiras e as lojas de coisas que quase ninguém mais quer. É justamente desses lugares, porém, onde se depositam e se encontram os restos ou o que não tem mais canto apropriado, que Rosângela Rennó resgata e restaura imagens fotográficas para integrar vários de seus projetos. Da mesma forma que busca e coleciona, onde quer que esteja ou vá, estando em bom estado ou quebrados, os equipamentos diversos que as produziam e guardavam no passado. [...]

    O [...] projeto apresentado por Rosângela Rennó em 2010, na 29a. Bienal de São Paulo tem por título Menos-valia [leilão] [...] consistiu na realização de um leilão de 73 trabalhos de sua autoria, os quais permaneceram disponíveis, por mais de dois meses, à apreciação de interessados em visita à mostra coletiva, antes de serem finalmente postos à venda, poucos dias antes do fim da exposição. Cada um desses artefatos teve origem em imagens analógicas e nos muitos objetos utilizados para produzi-las ou expô-las, incluindo máquinas fotográficas, filmadoras, molduras, estereoscópios, álbuns e projetores, todos adquiridos em lojas de coisas antigas, mercados e feiras. Alguns dos trabalhos resultaram de elaborado processo de combinação ou transformação dos componentes originais apropriados; outros, quase somente de sua limpeza ou conserto, em caso de não estar funcionando de modo adequado. Não importando o grau de intervenção física sofrida, todos eles traziam uma pequena e idêntica placa de acrílico indicando sua origem e, ao mesmo tempo, o fato de comporem, assim transformados, uma criação da artista. Atestado de pertencimento prévio a um mundo onde o valor de uso e o valor de troca são quase nada e, em simultâneo, de sua inserção em outro, onde valores novos podem ser criados.

    É essa ambivalência de Menos-valia [leilão] que o torna plataforma privilegiada para promover a reinscrição de imagens e objetos descartados como obsoletos ou imprestáveis em um circuito que passa a desejá-los novamente e que, portanto, os valoriza. O desejo por essas imagens e objetos ordinários e esquecidos é reativado por um sistema de consagração capaz de fazê-los objetos distintos e procurados, como talvez o tenham sido um dia, ainda que por razões diferentes. Constituindo arco amplo de interesses e posições, esse sistema se nutre do reconhecimento crítico da trajetória de Rosângela Rennó, do apoio das galerias que a representam e da legitimidade institucional da Bienal de São Paulo, que, por meio de seus curadores, convidou-a para desenvolver esse projeto em evento de tanta projeção pública. Essa valorização que o desejo aumentado traz possui duas principais dimensões que se amalgamam como partes de um processo quase indiviso, ainda que possam ser explicitadas em separado. 

    A primeira dessas dimensões se refere à agregação de valor monetário a cada trabalho leiloado em relação aos seus custos de produção (o custo das imagens e dos objetos tal como foram encontrados, bem como de sua recuperação, limpeza e montagem), os quais serviram como base para o estabelecimento dos preços iniciais do leilão. Sem nenhuma exceção, os preços mínimos de todas as peças iam sendo multiplicados por muitas vezes à medida que elas eram disputadas por uma audiência formada, majoritariamente, por colecionadores e galeristas, além de alguns curadores, críticos e jornalistas. O acirramento da competição por lotes cujo interesse partilhado mostrou-se mais evidente (um trabalho que fazia referência aos Bichos de Lygia Clark, outros que remontavam a uma série anterior da própria artista) deixou clara a excitação de uns e o desconforto de outros com a transparência e a crueza com que mecanismos básicos e vitais da geração de riqueza no sistema das artes eram exibi- dos. Arbitradas apenas pelos ritos do leilão, as distâncias e as proximidades entre interesse estético e apelo patrimonial tornavam-se mais difusas que evidentes.

    A segunda principal dimensão em curso nesse projeto, e que se sobrepõe à primeira descrita acima, se refere à mudança de lugar hierárquico de imagens e objetos em um mundo que quase os descartou por completo. Por ostentarem sua “denominação de origem” – lugares de abandono físico e simbólico a que foram em algum momento relegados e que estão gravados nas placas de acrílico que os acompanham – e por receberem um “certificado de propriedade e autenticidade” quando foram finalmente vendidos, imagens e objetos analógicos efetivaram, durante o leilão, sua passagem de um campo que acolhe o que é anônimo e disponível para outro que define o que é único e sujeito à posse; passagem que teve início no momento em que fotografias, câmeras, álbuns e muitas outras coisas antigas foram recolhidas por Rosângela Rennó e reapresentadas como componentes de um projeto de sua autoria. Essa alteração na ordem taxonômica das coisas foi ainda reforçada, mesmo que de modo temporário, pelo fato de o leilão ter se recusado a empregar, por determinação da artista, qualquer aparato digital para sua realização, não sendo permitidos nem mesmo lances de localizações remotas, fosse por telefonia ou por internet. Apenas aos que participaram presencialmente do evento ou por meio de representantes autorizados, igualmente presentes, foi possível concorrer pela aquisição dos lotes. 

    Apesar de trazer em seu nome composto um termo que denota subtração de algo, Menos-valia [leilão] lida, paradoxalmente, com geração de valor monetário e simbólico. Adição de valor por desígnio único da artista, mas que, somente após confirmada por aqueles a quem seus trabalhos são apresentados, passa a ter existência pública. Em operação rigorosa e clara, Rosângela Rennó exibe a potência da arte para criar valores do quase nada e apresenta, no mesmo instante, os atritos e os riscos a que está exposta por isso. Se a arte pode fazer, do lixo, poesia, está sujeita também a fazer da invenção uma mera cifra.


    ANJOS, Moacir dos. De lixo e poesia. In RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 30-40.
    There are many images in the world. Images that describe, comment, interpret or even deny what is in the world; images that, in different ways, invent and build public and intimate spaces; images that, just two centuries ago, were almost all drawn or painted, and frequently took days or months to finish. The speed of symbolic creation was greatly accelerated, however, by the invention of photography. Photographic images, once they became tools for capturing what exists or once existed somewhere, and what is or once was in another time, have charted the life that we call modern, and recorded the footprints of unceasing change. Moreover, it is they who witness the gradual transformation, towards an unalterable common destiny, of those who inhabit the world. Some photographs have color, others translate everything in black and white; some capture the world from afar, others almost scrape what they examine; some are solemn or nostalgic, others bear the marks of celebration and trust. As a group, they represent the shared memory of a community; in isolation, they impart or construct unique stories. 

    But maybe the world cannot handle quite so many images; at least, if we consider our limited capacity to remember them, given the selective nature of human memory. Or it is also possible that we simply lack the will to retain them all. And it does not matter if the ability to store visual records of things and people is greater now than ever before, growing as more images are produced, or perhaps even in anticipation of such an increase. In a time when the production of digital images multiplies at every turn, many photos are created, but many are not seen, and are saved for eternity even before circulation, so that we cannot even call them forgotten. These images become unnecessary, allegedly for being repetitive or banal, and have no definite function to perform. They are kept in virtual files for future reference, or abandoned there, potential reminders of a time and a place that are never activated. At times, they are even erased, discarded like residue. 

    By making it easy to produce countless images that can be transformed and combined at will, digital technology also promotes, paradoxically, an aversion to photographic media that resist the various possibilities of change. The anxiety to create and store ever greater numbers of images ends up producing, thus, a detachment from the media on which they used to be fixed, and that lent them a sense of permanence. Printed on paper or made into slides, photographic images are increasingly discredited as objects that deserve preservation, being frequently tossed out and away from the fluid circuit through which the cur- rent records of the world travel. They are not, however, abandoned to this fate by themselves, but are accompanied by the analog equipment which for so long produced them (cameras of various types and formats) and the props formerly used to organize and view them (albums, frames, viewers, among many others). 

    Printed photographs and assorted objects for producing and viewing images are, thus, gradually deprived of all “use value”, forgotten or simply discarded by those who previously ascribed to them symbolic and practical meaning. And because they lack usefulness in the current ordering of public or private life, they also have an “exchange value” bordering on nil, perhaps equivalent to that of a curio, and subject to the same fate as other residues of the world: markets, fairs and shops that sell things that almost nobody wants. It is precisely from such places, where leftovers and things that have lost their proper place can be found, that Rosângela Rennó salvages and restores photographic images for use in several of her works. In the same manner, she seeks out and collects, wherever she is or goes, be they in good condition or broken, the various devices that once produced and stored them. […]

    The […] work shown by Rosângela Rennó during the 29th São Paulo Biennial bears the title Menos-valia [leilão] (Minus-Value [Auction]) […] consists of the auctioning of 73 of her pieces, all of which were made available, for more than two months, for inspection by interested parties before being finally put on the block a few days before the end of the exhibition. Each of these works originated in the many objects used to produce or display analog images, and that were purchased in markets, fairs and antique shops, including still cameras, film cam- eras, picture frames, stereoscopes, albums and projectors. Some of the pieces resulted from an elaborate process of combination or transformation of the original appropriated components; others, almost exclusively from cleaning or, if not functioning correctly, repairing. Irrespective of the degree of physical intervention embedded in their development, each piece carried a small acrylic plaque indicating its origin and, simultaneously, that it was, thus transformed, part of a creation by the artist; a record of prior attachment to a world where use value and exchange value are almost nil and, concurrently, of its entry into another where new values can be created.

    It is this ambivalence of Minus-Value [Auction] that makes it a privileged vantage point from which to promote the reinstatement of images and objects, discarded as useless or obsolete, into a circuit that again covets and, therefore, attributes value. The desire for these ordinary and forgotten objects is reactivated by a consecration system that makes them noteworthy and desirable, as they may have been someday, albeit for different reasons. Comprising a broad spectrum of interests and positions, this system is nourished by critical recognition of Rosângela Rennó’s career, by support from galleries that represent her, and by the institutional legitimacy of the Biennial, which, through its curators, invited her to carry out this project at such a prominent public event. This appreciation in value, resulting from increased desire, contains two principal dimensions that merge as part of a nearly indivisible process, even though they can be examined separately. 

    The first of these dimensions refers to the aggregation of monetary value to the cost of production of each auctioned work (what was spent in the purchase of objects and images plus what was spent on restoration, cleaning and assembly), which served as the criterion for establishing the initial bid at the auction. Without exception, the minimum bids for all the pieces were multiplied several times by an audience consisting mostly of collectors and gallery owners, as well as some curators, critics and journalists. The intense competition for lots where collective interest was more obvious (a work that referred to Lygia Clark’s Bichos, as well as those that referred to a previous series by Rosângela Rennó) exposed the enthusiasm of some and the discomfort of others in the face of the transparency and crudeness with which vital and basic mechanisms for the generation of wealth in the art world were on display. Governed only by the rites of auction, the distances and proximities between aesthetic interest and the appeal of ownership appeared more diffuse than palpable. 

    The second main dimension of this project, which overlaps with the one described above, refers to modifying the hierarchical position of images, objects and devices in a world that had discarded them almost completely. By bearing their “denomination of origin” (locations of physical and symbolic abandonment to which they were, at some point, relegated, and that appear engraved on the accompanying acrylic signs) and by acquiring a “certificate of ownership and authenticity” when finally sold, analog images and objects shifted, during the auction, from the sphere that shelters the anonymous and the available to one that defines what is singular and subject to ownership; a transition that began when the photographs, cameras, albums and several other old things were salvaged by Rosângela Rennó and resubmitted as components of an authored work. This alteration in the taxonomic order of things was reinforced, even if only temporarily, by the artist’s determination that the auction forego all digital devices. Remote bids were not allowed, be they via telephone or internet; only those who attended the event in person or through authorized representatives, also present at the auction, were able to compete for the purchase of lots. 

    Despite carrying, in its compound name, a term that denotes the subtraction of something, Minus-Value [Auction] deals, paradoxically, in the generation of monetary and symbolic value. An aggregation of value that, while designed solely by the artist, only attains public currency once confirmed by those to whom the work is presented. Through a clear and rigorous operation, Rosângela Rennó displays the power of art to create values from virtually nothing and presents, at the same time, the tensions and risks to which this operation is exposed. If art can make poetry from trash, it can also reduce invention to a unit of currency. 


    ANJOS, Moacir dos. Of trash and poetry. In RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 30-40.


    Mitologias a marteladas

    Mythologizing with the hammer
    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Minus-value [auction]


      1. ALQUIMIA REALIZADA 

      As divorciadas, os ternos e os sapatos estão em tão bom estado de uso quando os substituímos pelo modelo mais recente, que seria insensato destruí-los pelo simples fato de já não nos servirem.

      Salvador Novo (1) 


      Se a lenda da Gata Borralheira pudesse ser traduzida para o folclore dos objetos e das mercadorias, haveria que escrever o mito do quadro milionário emergindo entre quinquilharias. A legitimidade dessa mitologia está, claro, em sua habilidade para esconder entre mil e um vestidos diferentes: a tela Os trabalhadores, de Van Gogh, que foi, supostamente, comprada em um mercado de pulgas de Paris em 1991 por um valor equivalente a 1 500 euros, e teve sua disputa em leilão, no qual se esperava alcançar pelo menos 3 milhões e meio de dólares, interrompida em 2003 (2); o marchand de Jakarta que afirmava ter encontrado 115 obras-primas euro- peias na Indonésia em lugares tão díspares como lojas de molduras ou plantações remotas (3); o pintor que em 1984 adquiriu Siesta, um pequeno esboço de Picasso, em um mercado da cidade de Colônia mediante o pagamento de três marcos (4); ou a exposição realizada pelo Museu de Breda em 2003 na Holanda, de quarenta supostas obras de Van Gogh, cuja duvidosa procedência confirmaria a lenda de que centenas de seus desenhos e quadros foram dispersos nos mercados de pulgas dessa cidade em 1902 (5) etc. O leitmotif de todas essas histórias não é tanto o adensamento do catálogo das referências da cultura quanto uma alegoria da súbita ascensão social expressa em uma mudança do estatuto ontológico a ser efetuada e validada pelo mercado. A obra de arte aparece aí como uma espécie de trickster, um mediador “entre escuridão e luz, feiura e beleza, riqueza e pobreza, o mundo inferior e o superior” (6). O erotismo do reconhecimento não se produz mediante a codificação sexual do baile principesco e do sapato de cristal, mas no trânsito mentiroso da lama do mercado do subúrbio ao cofre do banco, através das salas de leilão e da galeria. 

      A realização de Menos-valia [leilão] em 2010, de Rosângela Rennó consiste, precisamente, em encenar toda a sequência dessa rota mítica: a transmutação do material de uma arte cotidiana morta, a fotografia, seus instrumentos e produtos, tal como se encontram degradados, menosprezados e dispersos ao nível do chão do mercado de pulgas, e forçar sua ressurreição como hipermercadoria artística validada pelo duopólio da Bienal e do leilão. O projeto não elabora apenas em seu conjunto, de forma hipertecnicista e calculada, a manipulação dos mecanismos de valor que, de maneira demasiadamente cotidiana, constituem a conversão de lixo em ouro no circuito comercial da arte. A radicalidade do projeto consistiu em tornar visível, numa análise efetuada pela prática, de forma planejada, colaborativa e tecnicamente calculada, o fato de que a ontologia da obra de arte aparece hoje, não tanto no espaço deliberativo da crítica, ou do campo sensível da apreciação, mas sob a alquimia do martelo da competição através do mecanismo do leilão. Basta pensar o processo completo da obra como uma sequência narrativa, na qual em cada um de seus momentos dramáticos ocorre uma série de operações que aparecem, em suas pequenas modificações, como comentários críticos e anotações a um mecanismo generalizado da prática. Menos-valia [leilão] aparece, assim, como um relato que, nos seus atos, comenta de forma bastante detalhada todo o processo através do qual a obra de arte contemporânea satisfaz a fantasia coletiva da transmutação do lixo em aura. 

      Convém, neste momento, organizar esse percurso em uma sequência de pontos: 

      a) EXÉRCITO DE DES-EMPREGO
      Para que um objeto, resíduo ou documento se eleve ao mercado de pulgas é requerida sua instalação em uma peculiar zona neutra, onde aguarda ser recrutado para um novo destino, já carece de um valor conveniente e aparece sob uma peculiar e vaga desclassificação. As barracas dos mercados de pulgas acumulam, como a sujeira e os olhares, o diverso, o que sobra e o hipotético, emergindo daquilo que foi absolvido da aniquilação, em favor do des-emprego. O mercado de pulgas suga e dessangra o uso e o sentido, para dispor um cadáver ao simples desvio do que está morto para vir a ser um souvenir ou um item colecionável, detendo assim seu fluxo em direção à própria destruição e / ou sua total depreciação no lixo. Antes mesmo da intervenção que Benjamin atribuía ao colecionador, ao chegar às barracas do brechó os objetos já se emanciparam da “servidão de serem úteis” (7). Ao chegarem como refugiados em massa aos mercados de pulgas, bazares ou locais de reciclagem, os instrumentos, objetos e acessórios de fotografia do século XX testemunham uma catástrofe histórica: a aniquilação de um conjunto de práticas, usos sociais e marcos epistemológicos. Mas esse abandono vem acompanhado de certo “desejo da imortalidade” que o escritor Salvador Novo via realizado tanto nos usuários pobres de obje- tos de segunda mão quanto entre quem, como os colecionadores, rastreia as “coisas que não servem para nada”: “sem saber, sem perceber, antiquários e compradores de objetos de segunda mão se espremem na busca de um rastro humano que está ausente nos novos produtos mecânicos, mas já presente, morno, familiar e satisfatório, nos usados”. (8) 

      b) A MONTAGEM COMO RESSURREIÇÃO
      Segundo André Breton, em Nadja, uma pessoa vai aos mercados de pulgas “em busca de objetos que não se encontram em nenhum outro lugar, fora de moda, fragmentados, inutilizáveis, quase incompreensíveis, perversos” (9). De fato, as coisas que purgam sua espera nesses lugares já são objetos promíscuos, que se pres- tam a manuseios e manipulações contranatura, cabalmente desviados e prontos para as cópulas mais descomunais. A estada de uma câmera ou de uma pilha de diapositivos em uma barraca, no chão ou sobre uma mesa na assembleia de heterogeneidade, velhice e sujeira do mercado de pulgas, aposta entroncar com alguma classe de desejo, por mais pálido e torto que resulte, sempre e quando este contradiga (de modo degradado ou exaltado) seu destino original, ao mesmo tempo que absorve sua história. A perda de uso deixa o objeto disposto a fundir sua memória com um novo contexto, ainda que desproteja, com a perda de funcionalidade, sua integridade física e estética. 

      Se Rosângela Rennó escolhe o termo menos-valia para nomear seu projeto, não é só em referência irônica ao termo mais-valia da análise da mercadoria de Karl Marx, senão em referência ao caráter aleijado e mutilado de seus objetos. Em consequência, Rosângela Rennó opta por ressuscitar a sedução e o valor dos corpos mortos da história fotográfica, o método consagrado pela ressurreição do inerte desde que Mary Shelley escreveu Frankenstein: a colagem e a montagem. Os 73 lotes que produziu para Menos-valia [leilão] abarcam uma variedade de pró- teses, emendas e hibridações, todas elas dirigidas a infundir nos cadáveres de câmeras, equipamentos de projeção e revelação, imagens e acessórios óticos, uma nova vitalidade, por artificial que resulte. A realocação de carrosséis de diaposi- tivos em abajures, álbuns e jogos de transparência transformados em relicários e as câmeras dissecadas como troféus barrocos sugerem uma cirurgia maior: a criação de uma nova estirpe a partir de ruínas, ou seja, a aplicação de uma esté- tica do pastiche. Daí vem a tentação do encontro casual com a história cultural: a criação de uma discreta homenagem pós-cubista (quem sabe recordando Frank Stella e também Lygia Pape) colando e recortando em três marcos sucessivos retratos de casamentos (lote 23); um pequeno monumento às ambiguidades esquerdistas do pop cinematográfico, o Mickey Marx (lote 12), um viewmaster na forma do rato da Disney em pé, como uma lupa, sobre um braço flexível metálico, mas sobremaneira o engenho neoconcretista ao produzir um Bicho polaroide (lote 20) conseguido ao unir duas câmeras Polaroid pela base, para criar uma carica- tura mecânica das esculturas interativas de Lygia Clark. 

      Mas mesmo quando os lotes de Menos-valia [leilão] não têm uma referência tão marcada, caem todos sob certa luz de evocação e melancolia. São oferecidos ao consumo intelectual e aquisitivo, sob o aspecto um pouco chantagista do arranjo de flores de coral em um centro de mesa ou o altar doméstico de fragmentos e vistas de uma genealogia. De fato, os lotes de Rosângela Rennó não temem cair na retórica de proximidade do kitsch, no lugar da distância analítica da arte (10): essa renegociação com a memória mediante objetos abaratados do consumo que é, certamente, o doce reverso da modernização instalada no espaço íntimo. Todos eles aparecem para o observador como os resíduos embelezados e abrigados de certa época de ouro: os emissários de uma materialidade invencível ligada à captura de imagens que renascem, como borboletas secas, caracóis e insetos assassinados, na paz de uma morte que aparenta uma animação suspensa. 

      c) BIENAL APARADOR
      Todos nós sabemos que as bienais, assim como as exposições temporárias nos museus, são espaços do templo dedicados também à comercialização. A vocação não comercial das bienais de arte pertence às “negações práticas” de que falava Pierre Bourdieu ao fazer sua análise dos bens simbólicos, que “pretendem não estar fazendo o que estão fazendo”, à guisa de encerrar uma racionalidade econômica dirigida ao lucro que se realiza, precisamente, ao concentrar-se na exibição do desinteresse. Nesse sentido, os espaços aparentemente não comerciais constituem espaços de acúmulo de capital simbólico que, ao ser confrontado, aparece como um crédito que “a longo prazo” garante o ganho. (11) 

      Durante os dois meses e meio que durou a 29a. Bienal de São Paulo, entre setembro e dezembro de 2010, Rosângela Rennó desmentiu abertamente o caráter não comercial do espaço de visibilidade da Bienal, ao usar o convite para promover na exposição os lotes destinados a um leilão. Essa comercialização definia, por sua vez, um estilo de exibição que, em lugar de brindar cada “obra” com um espaço abstrato de apresentação, as agrupava em uma mesa rodeada por dois muros de estantes, de forma não de todo alheia à de uma boutique ou à de uma vitrine de loja de departamentos: como espaço de consagração e celebração de uma marca. Cada artigo vinha com uma etiqueta que enumerava e especificava cada lote. Todos esses gestos procuravam sublinhar o caráter dos objetos como mercadorias em potencial. Eram iscas dirigidas a visibilizar seu propósito de venda. 

      d) UMA ARTE DE “PARTICIPAÇÃO”
      Vasculhar o ritual de reflexão e consumo cultural da Bienal implicou, para Menos- -valia [leilão], inverter também a temporalidade dos rituais de exibição. A instalação, ao contrário do esperado, não aspirava ao momento dramático da abertura da Bienal como cerimônia de validação pública, adotando uma função preparatória para um momento de ação, mediada, no entanto, pela riqueza. Contra a retórica democrática e antifetichista da arte participativa, o momento ativo de Menos-valia [leilão] na Bienal de São Paulo ocorreu no encerramento do evento cultural, quando o espaço do Pavilhão do Ibirapuera foi transformado por Rosângela Rennó e seus agentes em uma sala de leilões. Esse abuso é criticamente revelador: nos lances de colecionadores, galeristas e representantes sob o martelo do leiloeiro, o espaço de uma contemplação degradada em promoção se resolve num jogo de competição por definir, a partir do maior lance, o valor do objeto, no momento em que a concorrência ritualizada estabelece o gozo coletivo de um estatuto de classe. Como defenderia Jean Baudrillard, “o lance do leilão, como a festa ou o jogo, institui um espaço-tempo concreto e uma comunidade concreta de intercâmbio entre iguais. Seja quem for o vencedor do desafio, a função essencial do lance de leilão é a instituição de uma comunidade de privilégios que se define como tal pela especulação agonística em torno de um corpus restrito de signos” (12). Tudo, no leilão de Menos-valia [leilão], num entusiasmo em que, sistematicamente, os preços finais se multiplicavam numa proporção por si só estratosférica de lucro em relação à matéria-prima morta. 

      Toda a ironia dessa operação residia, no entanto, na eloquência com que o dinheiro buscava verificar durante o leilão a autenticidade de cada um dos “lotes”, que eram proclamados por Rosângela Rennó como meramente acessórios da obra de arte como tal. Uma contradição se apresentava entre o fato de que o mecanismo de excitação e participação do gasto simbólico era de certa maneira anulado pela declaração da artista de que os lotes não eram “obras”, mas apenas seu conjunto, no percurso completo da ação. Gesto que queria suprimir, com um subterfúgio conceitual, o mimetismo perfeito do intercâmbio de signos. Interjeição em que a linguagem e a interpretação tratam de resgatar um fragmento crítico, deixando de ser, como ação, uma farsa mascarada pela máquina perfeitamente lubrificada dos mecanismos e mitos da arte na época do capital financeiro. 


      2. O PREÇO COMO ESPETÁCULO 

      Todos vocês, otários, que vão ser depenados, façam fila para a grande cilada!

      Groucho Marx em Cocoanuts, 1929


      Não nos enganemos: o preço se converteu em uma das principais categorias da sociedade contemporânea. Essa é uma verdade tão evidente que preferiríamos defender com a mais ampla negação. É uma obviedade insultantemente evasiva a todo resgate teórico que uma das principais funções da obra de arte nos nossos dias é representar a arbitrariedade do signo e do valor, em um horizonte de interações pessoais espetacularizadas. É o que se expressa na função social da obra de arte como hipermercadoria: suscitar a fascinação pelo seu perpétuo movimento entre o não-valor e o valor estratosférico, entre o nada e o absoluto, entre a genialidade e a gozação. É no estatuto da hipermercadoria que socialmente temos decidido materializar a mitologia da transformação do lixo em ouro, ao transpor a (suposta ou efetiva) fraude artística na segurança financeira. 

      A estetização do preço é antes de tudo uma operação epistemológica. Todo arsenal de teorias, debates, qualidades, sensações e argumentações que rodeia o uso, o rastro e o consumo cultural da arte se dilui ante a redução das obras ao valor numérico do dinheiro. “No dinheiro”, argumentava Marx, “o valor das coisas está separado de sua substância” (13).  Nisso Sarah Thornton não se equivoca: “Os leilões são implacavelmente quantitativos; uma versão em preto e branco do mundo cinzento da arte. Artistas e escritores tendem a se deleitar com a ambiguidade. [...] A batida do martelo, por outro lado, [...] significa realmente ‘fim de papo’” (14). 

      Subsumindo o oposto, o diverso, o variado à hierarquia inequívoca do valor preço, a tradução ao dinheiro aparece em relação à obra de arte de forma muito mais imediata e precisa que em qualquer outro campo devido, em termos gerais, aos custos de produção aparecerem como fungíveis (15). Inclusive no cinema, na televisão e na indústria musical, o culto ao preço e ao lucro costuma ser dissimulado pela aura da personalidade, a fascinação identitária e a sedução sexual, a oferta diversificada de identificações com que cada pessoa produz sua clientela em busca do catálogo de vidas que jamais possuirá. O custo de um filme ou seu retorno em bilheterias são também valores estéticos, mas aparecem agregados e em paralelo a critérios como a popularidade de uma “estrela”. Em troca, a admiração pelo custo tende, no campo das obras de arte, a se autonomizar. O signo é sua verdade e celebridade. É sua teoria primária de recepção. 

      Sejamos precisos: a posse de objetos artísticos constituía, no passado, um dos marcadores e ornamentos do estatuto de classe, ligado à trajetória de uma hierarquia e de uma propriedade herdadas. Era, de fato, um dos principais ornamentos da nobreza. Com a ascensão da classe mé- dia, esta passou a inserir-se na dupla realidade da ambição de “cultura” e das formas de “consumo conspícuo” que Thorstein Veblen descreveu em 1899 em sua Teoria da classe ociosa: a negociação de desperdício e consumo desnecessário (como com mulheres, serviçais e gastos com luxo) para obter prestígio. Esse registro vai ser transformado no espetáculo dos leilões e da especulação financeira por meios artísticos, no ritual da celebração da escalada incontrolável do valor. Se não é a causa da incansável corrida dos preços do mercado secundário de arte, é difícil negar que seu erotismo reside, precisamente, no encarecimento. Esse princípio aparece com nitidez em uma frase de Philippe Ségalot, um corretor e consultor de colecionadores: “As compras mais caras, as compras nas quais você mais sofre, se revelam as melhores” (16). Para além do modo como a alta dos preços tende a proteger, de forma paradoxal, o suposto investimento oferecido pelas obras de arte e por seus colecionadores, mantendo um mercado permanentemente inflado, o sistema artístico opera sobre a base de prometer ao comprador um maior prazer em proporção direta ao gasto realizado. 

      Mas é nesse grau zero da linguagem que está o valor-signo do dinheiro, é aí que se produz uma rotação radical. Não por nada Baudrillard se ocupou em teorizar o leilão de arte como a “matriz ideológica” em que o valor econômico, o signo e o valor simbólico se fundem, na chegada de um novo modelo de domínio baseado já não somente na propriedade dos meios de produção, mas também no “controle do processo de significação”(17) Baudrillard entende os leilões de arte como simulacro da concorrência aristocrática entre relações econômicas capitalistas, como o espaço no qual os valores e os signos culturais são transmutados, por meio do gasto de dinheiro, em uma espécie de sacrifício simbólico controlado, um potlatch em que as elites das sociedades ocidentais aparecem destruindo os recursos para vê-los emergir na forma de status. A regra desse jogo, como Baudrillard insiste repetidamente, é que o valor cultural da obra de arte resulta já insignificante ou é dissolvido na festança de gastos. São de fato os usos, as leituras e os significados da obra de “arte” os primeiros a caírem aniquilados e destruídos pelo excesso de valor. Sua condição de mercadoria top requer a expulsão dos resíduos culturais que albergam simbolicamente, para ser meros signos do gasto simbólico. Baudrillard escreve: 

      • A casta dos participantes sabe no fundo que o verdadeiro status, a verdadeira legi- timidade, a reprodução da relação social e, portanto, a perpetuação da classe domi- nante “em seu ser” são disseminados na manipulação aristocrática das obras como material de câmbio / signo. A casta despreza, no fundo, a “estética”, a “arte”, o simbólico, a “cultura”, que são bons como valores “universais”, para o consumo coletivo. O prazer estético, o comércio com as obras, os valores chamados “absolutos” são o que resta para aqueles que não podem alcançar o potlatch privilegiado. (18)

      Junto com a publicidade e a (auto)exibição das trapalhadas românticas, sexuais, neuroquímicas e pornográficas dos “famosos”, os leilões de arte e a visibilidade do mercado artístico passaram a converter-se em um dos sítios privilegiados da transformação da riqueza e do poder em reputação cultural e midiática. São, como os vídeos de pornografia caseira dos “famosos”, um espaço de transgressão sancionada com o que a riqueza privada se inscreve num lugar de desejo público. Essa função, no entanto, vai além da representação da diferença de classes e do traçado de uma linha divisória entre quem pode ou não participar do luxo. Está fundada na ritualização do preço como fetiche social, consistente com a condição da obra de arte como ultramercadoria. Na medida em que a globalização implica a expansão do capitalismo financeiro em toda a circunferência da Terra, esse jogo de renegociação do capital simbólico aparece também mundializado. Que essa economia do prestígio se expresse em português e em “reais” é um sintoma, além de tudo, do estatuto de poder emergente que registra o capitalismo brasileiro. O leilão de Rosângela Rennó apareceria assim como um sinal da disponibilidade extraordinária de recursos que, pela via do “capital fictício” do sistema financeiro (19) se encontra momentaneamente excedente e, portanto, carente de alguma materialização. 


      3. DIVERSÃO E INVERSÃO (20) 

      • Você tem que vir. Vai ter diversão, sanduíches, e o leilão. Se você não gostar de leilão, podemos brincar de... hum... fazer contratos.

      • Groucho Marx, em Cocoanuts, 1929 


      Como interpretar a pretensão de Rosângela Rennó de intervir nesse paroxismo do signo e do gasto simbólico, além de documentar, na prática e em suas diversas fases, as mitologias da orgia de gastos artísticos da obra de arte no leilão e no momento em que seu país, o Brasil, adquire um papel econômico decisivo? Em outras palavras, como comentar a aposta de que isso seria uma piada cínica e macabra, sobre uma substância ilusoriamente desiludida? 

      Uma possibilidade é entender Menos-valia [leilão] nos termos da resistência conceitual que corresponde ao conjunto da chamada crítica institucional: estabelecer um resquício de reflexão mediante o cancelamento dos momentos de ilusão ideológica de criação autônoma e poética, para mostrar um sistema que, na medida em que é reproduzível, mostra seu caráter eminentemente técnico. Se algo foi demonstrado no leilão é o caráter previsível e manipulável do mercado secundário, o modo com que o culto orgiástico à competição para elevar os preços na estrutura do leilão pode ser induzido e controlado como parte de um processo cuidadoso e paciente de negociação de capital simbólico. Esse leilão, em outras palavras, é uma treta e uma armadilha realizada abertamente e sob todas as luminárias possíveis. Um engano efetuado no meio de uma cena cultural pública. 

      Seria possível também argumentar que a artista produziu Menos-valia [leilão] como uma espécie de comparação algébrica da sua prática de reativação dos poderes e sombras do fotografado. Menos-valia [leilão] aparece como uma espécie de arriscado cancelamento e autoquestionamento do projeto pelo qual, durante mais de duas décadas, Rosângela Rennó planejou uma multidão de estratégias vi suais e conceituais com o fim de negociar com uma sombra de sombras: a sombra do “fotográfico”. Assinala um momento de monumentalização post-mortem da fotografia como arte democrática, que introduz seus resíduos no catálogo dos troféus da crescente divisão de classes. 

      Nessa direção, é promissor encontrar uma das chaves do processo posto em andamento por Rosângela Rennó no hieróglifo de um título que já havia aparecido em sua produção meia década antes. Em Menos-valia (2005-2007) a artista exibiu uma quantidade de artigos e produtos fotográficos comprados em uma só jornada, em 18 de junho de 2005, no mercado de Troca-troca no Rio de Janeiro. Rosângela Rennó havia registrado a falta de solidez dos preços desses artigos, significando os descontos que obteve na pechincha com cortes efetuados nos objetos, que representavam proporcionalmente os descontos que a artista obteve a cada transação (21). A artista-cirurgiã fazia aparecer nesses objetos a depreciação como ferida e dano, mediante o castigo da mutilação. Ao manter esse título para sua intervenção no dispositivo do leilão durante a Bienal de São Paulo de 2012, Rosângela Rennó quis deixar uma indicação de que a nova ação teria uma função complementária, se bem que nesse caso a arbitrariedade da depreciação-inflação apareceria mais como a sensação de uma espécie de “membro-fantasma” pela castração na forma do valor criado aparentemente ex-nihilo para a imaculada concepção serial de “obras de arte”. Outro signo da arbitrariedade do signo: outra cópia da fatuidade da relação entre objeto cultural e objeto comercial que envolve a arte como mercadoria. 

      Mas nessa arbitrariedade final cabe, talvez, uma redenção paradoxal, que entende que a ausência de justiça no preço é, também, o sinal da impossibilidade de fechar o círculo de mudanças de assinação do significado dos objetos. De fato, em suas meditações fragmentárias sobre o encantamento da mercadoria, Walter Benjamin vislumbrou a possibilidade de encontrar uma certa analogia entre a impossibilidade de prever o valor econômico e a impossibilidade de fechar o ciclo do significado dos objetos, como dupla expressão das “sutilezas metafísicas” da mercadoria: 

      • Ocorre exatamente o mesmo com o objeto em sua existência alegórica. Nenhuma fada determinou em seu nascimento qual o significado que lhe atribuirá a meditação absorta do alegorista. Porém, uma vez adquirido tal significado, este pode ser substituído por outro a qualquer momento. As modas dos significados mudam quase tão rapidamente quanto o preço das mercadorias. De fato, o significado da mercadoria é seu preço; como mercadoria, ela não possui nenhum outro significado. Por isso, o alegorista está em seu elemento com a mercadoria. (22) 

      Menos-valia [leilão] é a realização da arte do alegorista da etiqueta de preços. Como Benjamin houvesse querido, Rosângela Rennó aspira nos ensinar a cultivar uma forma especial de hermenêutica: fazendo-nos percorrer as transmutações do preço como parte de uma mesma dialética que estabelece, de forma provisória, a alquimia do afeto e do significado. É a visão de um alguém, o fantasma da fotografia assassinada, que contempla o “inferno” de transformações e oscilações que pulsa no coração da obra de arte como hipermercadoria


      1. Salvador Novo, “En defensa de lo usado”, in Viajes y ensayos. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, t. i, p. 92.
      2. “Van Gogh found at flea market”. CNN,11/12/2003; “Van Gogh sale delayed for checks”. BBC,12/12/2003. 
      3. “Indonesian art ‘finds’ leave critics groaning”. The Guardian, 24 / 11 / 2000. 
      4. “Flea Market sketch a genuine Picasso”. The Montreal Gazette, 11 / 12 / 1984. 
      5. The ArtNewspaper, n. 141, 1 / 11 / 2003. 
      6. Octavio Paz, Claude Lévi-Strauss o el nuevo festín de Esopo. México: Joaquín Mortiz, 1967, p. 36. 
      7. Walter Benjamin, The Arcades Project, trad. Howard Eilandand & Kevin McLaughlin. Cambridge, ma, Londres: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 209. (H3, 2)
      8. S. Novo, op. cit., p. 93.
      9. André Breton, Nadja, trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 56. 
      10. “O que costumávamos chamar de arte começa a uma distância de dois metros do corpo. Mas agora, com o kitsch, o mundo das coisas avança sobre o ser humano; ele sucumbe à sua posse vacilante, e molda suas figuras em seu interior.” Walter Benjamin, “Dream kitsch”, in Selected Writings, vol. 2: 1927-34, trad. Rodney Livingstone. Cambridge, Massachussets, Londres: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, v. 2, pp. 4-5. 
      11. Ver Pierre Bourdieu, A produção da crença: Contribuição para uma economia dos bens simbólicos, trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Porto Alegre: Zouk, 2006. 
      12. Jean Baudrillard, Crítica de la economía política del signo, trad. Aurelio Garzón. México: Siglo xxi, 1974, p. 129.
      13. Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. Borrador 1857-1858. México: Siglo XXI, 1971, v. i, p. 75.
      14. Sarah Thornton, Sete dias no mundo da arte, trad. Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Agir, 2010, p. 52. 
      15. A exceção está, claro, no limite grotesco dos artistas que fazem obras erguidas de diamantes, para igualar o custo do material ao da montagem. Mas esses objetos estão degradados em sua nulidade artística inicial.
      16. S. Thornton, op. cit., p. 31. 
      17. Id., ibid., pp. 121, 127. 
      18. Id., ibid., p. 135. 
      19. Como é bem sabido, “capital fictício” é a categoria que Marx alcunhou para descrever a geração de capital bancário, que aparece “como um autômato que se valoriza por si só” sem conexão com o processo de produção. (Karl Marx, El capital: Crítica de la economía política, trad. León Mames. México: Siglo XXI, 1976, t. 7, p. 601.) 
      20. Na tradução, esses termos perderam a raiz etimológica que conecta diversión (diversão) a inversión (investimento). [n.t.] 
      21. Ver Rosângela Rennó. Frutos estranhos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.234. 
      22. Walter Benjamin, Passagens, trad. Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 414. [J 80,2 / J 80a, 1] 


      MEDINA, Cuauhtémoc. Mitologias a marteladas. In: RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]: Rosângela Rennó. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 288-315. 
      1. ALCHEMY ACHIEVED 

      Divorcées, suits and shoes remain in such good conditions when we abandon them for newer models that it would be senseless to destroy them simply because they are of no use to us.

      Salvador Novo (1) 


      If the legend of Cinderella could be translated into a folk tale of objects and commodities, one would have to write the myth of the million-dollar painting surfacing among knick-knacks. The legitimacy of this mythology lies, of course, in the ease with which it is re-circulated in a thousand and one different garbs: Van Gogh’s canvas The Laborers, which was supposedly bought at a Parisian flea market for the equivalent of €1 500, and for which bidding was expected to reach three and a half million dollars before the auction was halted in December 2003; (2) the dealer in Jakarta who claimed to have found 115 European masterpieces in such dissimilar places on the Indonesian Archipelago as frame shops and remote plantations; (3) the painter who acquired Siesta, a small sketch by Picasso, for three Deutschemarks at a Cologne market in 1984; (4) or the Breda Museum’s 2003 exhibition in the Netherlands of 40 supposed van Goghs, whose dubious provenance hinged on the legend that hundreds of his drawings and paintings had been scattered among the city’s flea markets in 1902; (5) etc. The leitmotif of all these stories is not so much a thickening of the catalog of cultural references as an allegory of sudden social ascent, expressed in a change of ontological status that has been effected and validated by the market. The work of art emerges here as a sort of trickster, a mediator “between darkness and light, ugliness and beauty, wealth and poverty, the lower and upper classes” (6). The eroticism of recognition is not produced through the sexual codification of the princely ball and the glass slipper, but in the mysterious transit from the grime of the little market in the poor part of town to the bank vault, by way of the auction hall and the gallery. 

      Rosângela Rennó’s Menos-valia [leilão] (Minus-Value [Auction]), 2010, puts this into practice by staging the entire sequence of this mythic trajectory. Transmogrifying the materials of a dead, everyday art – i.e., photography, its instruments and products – just as these are found, worn down, devalued, and scattered on the floor of value of the flea market, she forces their resurrection in the form of artistic hyper-commodities that have been validated by the duopoly of the Biennial and the auction. The project as a whole not only elaborates, in an extremely technically complex and calculated way, the manipulation of the mechanisms of value that constitute, in an equally quotidian fashion, the commercial art circuit’s conversion of garbage into gold. Its more radical element consists of making visible, through an analysis carried out in practice, the planned, collaborative and technically calculated form in which the ontology of the work of art today is less effected in the deliberative space of critique or the sensuous field of appreciation than it is smelted on the auction block. It suffices here to envision the entire process of the work as a narrative sequence in which each dramatic moment is marked by a series of operations that emerge, through their slight modifications, as critical commentaries and notes on a generalized mechanism of practice around and about artworks under capitalism. Minus - Value [Auction] becomes, then, a story whose acts comment in an extremely detailed way on the entire process by which the contemporary work of art satisfies the collective fantasy of the transmutation of waste into aura. 

      It would be prudent, before going any further, to parse this journey into a set of sequences: 

      a) AN ARMY OF THE UNEMPLOYED
      When an object, residue or document arrives at a flea market, it is inscribed in a peculiar gray zone where it lacks any established value and wavers within a peculiar and vague declassification while it awaits its enlistment in a new destiny. In addition to grime and gazes, the stalls of a flea market accumulate the eclectic, the leftover, and the hypothetical, which emerge from all that has been spared from annihilation in favor of unemployment. The flea market sucks out their uses and their meanings, making their cadavers available for transfer as souvenirs or collectibles, slowing their journey toward destruction and / or their total devaluation as waste. Upon their arrival to the dime store – even before the intervention that Walter Benjamin attributed to the collector – these objects have been liberated from “the drudgery of being useful” (7). Arriving en masse like refugees to flea markets, bazaars, and recycling plants, the instruments, objects and accessories of twentieth-century photography bear witness to an historical catastrophe: the annihilation of a whole world of practices, social uses and epistemological frames. But their severance comes accompanied by a certain “yearning for immortality” that the writer Salvador Novo saw fulfilled as much in the poor users of secondhand objects as among the collectors who trawl for “things that are of no use”: “without knowing it, without being aware of it, antiques dealers and the buyers of secondhand objects join forces in the search for a human trace that is absent from new mechanical products but already present, warm, familiar and satisfying, in used ones.” (8).

      b) MONTAGE AS RESURRECTION
      As André Breton writes in Nadja, one goes to flea markets “searching for objects that can be found nowhere else: old-fashioned, useless, almost incomprehensible, even perverse” (9). Indeed, the things that find themselves in that purgatory are already promiscuous objects, given to unnatural passages and manipulations, completely off the rails and ready for the most unusual conjugations. A camera or a stack of slides on the floor of a stall, or in the union of heterogeneity, antiquity and griminess of a flea market table makes a bid for connecting to some sort of desire, however pallid or equivocal this might be, as long as it contradicts (exaltedly or degradedly) its original destiny while at the same time absorbing its history. The loss of its utility renders an object’s memory available to be smelted with a new context, even though its loss of functionality might make vulnerable its physical and aesthetic integrity. 

      In choosing the term minus-value to name her project, Rosângela Rennó does not merely make an ironic reference to Karl Marx’s use of the term surplus value in his analysis of the commodity, but also to the paraplegic or disabled character of her objects. (10) As a consequence, Rosângela Rennó elects to resuscitate the seduction and the value of the corpses of photographic history by means of the methods of revivifying the lifeless that was consecrated by Mary Shelley’s Frankenstein: namely, collage and montage. The 73 lots that the artist produced for Minus-Value [Auction] involve a variety of prosthetics, patches and hybridizations, all aimed at infusing the cadavers of cameras, projectors, developing equipment, images and optical accessories with a new vitality, however artificial this might be. Examining projectors with slide carousels, al- bums and sets of transparencies transformed into reliquaries, and the baroque trophies of desiccated cameras, suggests a bigger surgical procedure: the creation of a new stock from out of ruins – that is, the application of an aesthetics of pastiche. Whence the temptation of the occasional citation of cultural history: the creation of a discreet post-Cubist homage (which recalls Frank Stella as much, perhaps, as Lygia Pape) by way of cropping three wedding portraits and sticking them in successive frames (lot 23); a small monument to the Leftist ambiguities of cinematic Pop, Mickey Marx (lot 12), a View-master in the shape of Disney’s mouse placed, like a magnifying glass, on a flexible metallic arm; and above all, the neo-Concrete boutade of producing a Bicho Polaroide (lot 20) made from uniting two Polaroid cameras at their bases to create a mechanical caricature of Lygia Clark’s interactive sculptures. 

      But even when the lots of Minus-Value [Auction] make no such marked references, they still fall under the sway of a certain melancholy and evocativeness. They are offered up to a consumption that is as intellectual as it is acquisitive, in the somewhat manipulative guise of a coral centerpiece that evokes a flower arrangement, or a domestic altar made up of fragments and views of a genealogy. Indeed, Rosângela Rennó’s lots are not afraid to fall into the rhetoric of proximity that characterizes kitsch, rather than the analytic distance of art: (11) that renegotiation with memory through the low-priced objects of consumption that is, surely, the saccharine backside of modernization, lodged in intimate space. They all appear to the observer as the protected and embellished residues of a certain golden age: the emissaries of an insuperable materiality tied to the capture of images that are reborn, like dried butterflies, snail shells and murdered insects, in the peace of a death that takes on the appearance of suspended animation. 

      c) BIENNIAL SHOP WINDOW
      We all know that Biennials, no less than museum exhibitions, are temple spaces that are also dedicated to commercialization. The non-commercial vocation of the art biennial belongs to the “practical negations” of which Pierre Bourdieu wrote in his analysis of symbolic goods. These “can only work by pretending not to be doing what they are doing”, in terms of enclosing an economic rationality oriented toward the profit obtained precisely by concentrating on the display of disinterest. In that sense, ostensibly non-commercial spaces constitute a space of accumulation of symbolic capital that becomes, through disavowal, a credit guaranteeing a return “in the long run”. (12)

      Over the course of the two and a half months that the 29th Biennial de São Paulo was open in the fall of 2010, Rosângela Rennó openly denied the non-commercial character of the Biennial’s space of visibility by using her invitation to exhibit as a way of promoting lots that were destined for auction. This commercialization in turn defined a style of exhibition that, in lieu of granting each “work” an abstract space of presentation, grouped them together on a table that was surrounded by two walls of shelves, in a form not terribly unlike that of a boutique or a department store: i.e., a space of a brand’s entrenchment and celebration. At the same time, each article came with a tag that listed and specified each lot. All of these gestures sought to underline the objects’ character as potential commodities. They were decoys aimed at making visible their commercial purpose. 

      d) AN ART OF “PARTICIPATION”
      For Minus-Value [Auction], disrupting the Biennial’s ritual of reflection and cultural consumption also meant inverting the temporality of the rituals of exhibition. Instead of culminating with the dramatic moment of the biennial’s opening as a ceremony of public validation, the exhibition adopted a preparatory function for a moment of action that was nevertheless mediated by wealth. In contrast to the democratic and anti-fetishistic rhetoric of participatory art, the active moment of Minus-Value [Auction] in the Biennial de São Paulo coincided with the closure of the cultural event, when Rosângela Rennó and her agents transformed the space of the Ibirapuera pavilion into an auction theater. This abuse is critically revealing. In the collectors’, dealers’, and representatives’ bidding, under the auctioneer’s hammer, the space of contemplation – which had erstwhile degraded into promotion – was twisted into a competitive game to define the value of an object with the highest bid. By the same token, this ritualized competition established the collective enjoyment of a class status. As Jean Baudrillard would say, “the auction, like the fête or the game, institutes a concrete community of exchange among peers. Whoever the winner in the challenge, the essential function of the auction is the institution of a community of the privileged who define themselves as such by agonistic speculation upon a restricted corpus of signs”. (13) All of this was apparent in the enthusiasm that attended the auction of Minus- Value [Auction], during which hammer prices systematically multiplied a profit margin that was already stratospheric in comparison to the cost of the artist’s dead materia prima

      Before the eloquence with which money served to verify the authenticity of each of the “lots” during the auction, the irony of this operation stemmed, nonetheless, from Rosângela Rennó’s proclamation that they were merely accessories to the artwork. A contradiction emerged from the fact that the mechanism of arousal and participation in symbolic expenditure was some- how canceled out by the artist’s declaration that the lots could be considered “a work of art” only when they were united as a set in the context of the entire action. This gesture hoped to annul the perfect mimicry of the exchange of signs through conceptual subterfuge. Within this interjection, language and interpretation tried to recuperate a critical fragment, in which it did not cease to be, as action, a farce and a masquerade of the perfectly oiled machine of the mechanisms and myths of art in the age of finance capital. 


      2. PRICE AS SPECTACLE 

      All ye suckers who are gonna get trimmed, step this way for the big swindle!

      Groucho Marx in The Cocoanuts, 1929.
       

      But let us not veer off course: price has become one of the principal aesthetic categories of contemporary society. This is a truism that we would prefer to honor with a broader denial. To say that one of the principal functions of the work of art in our time is to represent the arbitrariness of the sign and of value within a horizon of spectacularized personal interactions is a platitude so insipid that it is beyond any theoretical salvaging. All of this is expressed in the artwork’s social function as a hyper-commodity: to arouse fascination with its perpetual alternation between non-value and stratospheric value, between nothingness and the absolute, between fraud and an act of genius. It is in the statute of the hyper-commodity that we have decided, socially, to materialize the myth of the transformation of garbage into gold by transposing (what is supposedly or effectively) artistic fraud into financial security. 

      The aestheticization of price is above all an epistemological operation. A whole arsenal of theories, debates, qualities, sensations and arguments that surrounds the uses, traces and cultural consumption of art vanishes before the reduction of works to the numerical value of money. “In money,” Karl Marx argued, “the value of things is separated from their substance.” (14) And in this Sarah Thornton makes no mistake: “Auctions are unremittingly quantitative. They are a black-and-white version of the gray world of art. Artists and writers tend to revel in ambiguity. [...] A hammer price, by contrast, [...] really means, ‘Say no more’”. (15)

      Subsuming the opposed, the diverse, and the varied within the unequivocal hierarchy of price, the work of art’s translation into money appears much more immediately and precisely than does that of any other cultural commodity, since, in general terms, the costs of production appear to be fungible (16). Even in film, television and the music industry, an admiration of prices and profits tends to be dissimulated by the cult of personality, identitarian fascination and sexual seduction, with the diversified identifications on offer producing, person by person, a clientele in search of the catalogue of lives that it will never possess. The cost of a film and its box office return are also aesthetic values, but they appear to be in addition and incidental to other criteria, such as the popularity of a “celebrity”. In the field of artworks, by contrast, admiration of cost tends to become autonomized. It is the sign of its truth and celebrity. It is its primary theory of reception. 

      Let us be clearer: in the past, the possession of artistic objects constituted one of the markers and ornaments of class status, tied to the trajectory of inherited hierarchy and property. It was, indeed, one of the principal accoutrements of nobility. With the rise of the middle class, ownership of art objects was integrated into the double register of the “cultural” ambitions and forms of “conspicuous consumption” that Thorstein Veblen described in 1899 in his Theory of the Leisure Class: the negotiation of expenditure and vicarious consumption (through women, servants and sumptuary expenses) to obtain prestige. This register gradually becomes a spectacle of auctions and financial speculation by means of art, and it came to be transformed into a ritual celebration of the uncontrollable escalation of value. If this is not the cause of the tireless race of prices in the secondary art market, it is hard to deny that its eroticism stems precisely from this rise. This principle is made starkly apparent in an observation recorded by Sarah Thornton: according to broker and art consultant Philippe Ségalot, “The most expensive purchases – the purchases where you suffer the most – will turn out to be the best ones” (17). Beyond the way in which the rise of prices tends paradoxically to protect the supposed investment that works of art offer to their collectors, in maintaining a permanently inflated market the art system operates on the basis of promoting greater pleasure for the buyer in direct proportion to the amount of money that he or she spends. 

      But a radical rotation is produced in the zero degree of language that is the sign value of money. It is no accident that Baudrillard theorized the art auction as an “ideological matrix” wherein economic value, sign value and symbolic or destruction value merge, coinciding with the arrival of a new model of domination no longer based solely on ownership of the means of production, but also on “the mastery of the process of signification” (18). Baudrillard understands art auctions as simulacra of the game of aristocratic competition in the context of capitalist economic relations, as the space in which cultural values and signs are transmuted through the expenditure of money in a sort of controlled symbolic sacrifice, a potlatch where the elites of Western societies appear to destroy resources in order to see them reemerge in the form of status. To bring about this game, as Baudrillard insists repeatedly, the cultural value of works of art is insignificant, or finds itself dissolved in the festival of expenditure. The uses, readings and meanings of the work of “art” are indeed the first to be obliterated by the excess of value. Its commodity condition requires the expulsion of the cultural residues that it symbolically harbors in order for it to become a mere sign of symbolic expenditure. Baudrillard writes: 

      The caste of partners knows at bottom that the veritable status, the veritable legitimacy, the reproduction of the social relation, and so the perpetuation of the dominant class “in its essence,” is enacted in the aristocratic manipulation of works as the material of sign exchange. At bottom it disdains the “aesthetic,” “art,” the symbolic and “culture” which, as “universal” values, are barely good for collective consumption. Aesthetic enjoyment, spiritual commerce with the works, and the values labelled “absolute” are all that is left to those who cannot aspire to the privileged potlatch (19).

      Together with publicity and the exhibition(ism) of the romantic, sexual, neurochemical and pornographic outrages of “celebrities”, art auctions and the visibility of the art market have gone on to become one of the privileged marquees upon which wealth and power come to be transformed into a reputation within the culture and media at large. Like the homemade porn videos of “celebrities”, art auctions are a space of sanctioned transgression through which private wealth is inscribed in a space of public desire. This function nevertheless goes beyond the representation of the distinction of classes and the trace of the line that divides those who can and those who cannot participate in luxury. It consists of the ritualization of price as a social fetish, consistent with the art- work’s condition as a hyper-commodity. If globalization implies the expansion of financial capitalism across the globe, this game of renegotiating symbolic capital, too, comes to be globalized. That this economy of prestige is expressed in Portuguese and in reais is symptomatic, moreover, of the statute of emerging power that defines contemporary capitalism in Brazil. Rosângela Rennó’s auction would thus show itself to be a sign of the extraordinary availability of resources that find themselves, thanks to the “fictitious capital” of the financial apparatus (20), momentarily over-inflated and in need of some materialization. 


      3. RECREATION AND INVESTMENT (21)

      You must come over. There’s gonna be entertainment, sandwiches, and the auction. If you don’t like auction, you can play, uh, contract.

      Groucho Marx in The Cocoanuts, 1929. 


      How to interpret Rosângela Rennó’s desire to intervene in that paroxysm of the sign and symbolic expenditure, beyond documenting, in practice and in its different phases, the mythologies of an orgy of artistic expenditures of the work of art in the time of the auction and at a moment when her country, Brazil, has acquired a decisive role in the global economy? In other words, how to comment on her wagering on a cynical and macabre joke rather than an illusorily disillusioned substance? 

      One option is to understand Minus-Value [Auction] within the framework of conceptual resistance that corresponds to the so-called institutional critique group: to establish an opening for reflection annulling the moments of the ideological illusion of autonomous, poetic creation in order to reveal a system that, to the degree that it is reproducible, reveals its eminently technical character. If Rosângela Rennó’s auction demonstrated anything, it is the predictable and manipulable character of the secondary market, the way in which the orgiastic cult of the competition to elevate prices within the structure of the auction can be incited and controlled as part of a careful and patient process of negotiation of symbolic capital. This auction, in other words, is a ploy and a trap carried out in the open and under the glare of every possible spotlight: it is a trick effected in the heart of the public cultural scene. 

      It could also be added that the artist has produced Minus-Value [Auction] as a sort of algebraic comparison of her practice of reactivating the powers and shadows of the photographed. Minus-Value [Auction] looks like a daring cancellation and self-interrogation of a project for which, for more than two decades, Rosângela Rennó has projected a multitude of visual and conceptual strategies with the aim of negotiating with the shadow of a shadow: the shadow of “the photographic”. She points toward a moment of photography’s post-mortem monumentalization as a democratic art, which introduces its residues into the catalogue of the trophies of the growing division between classes. 

      In that vein, one of the more promising keys of the process that the artist has put into motion is to be found in the hieroglyph of a title that had al- ready appeared in her work with half a decade of advance warning. In Menos- valia (2005-2007) [Minus-Value (2005-2007)] Rosângela Rennó exhibited a variety of photographic products and articles purchased over the course of a single day, June 18, 2005, at the Troca-troca [tit for tat] flea market in Rio de Janeiro. Rosângela Rennó had inscribed the lack of solidity of those arti- cles’ prices, effecting a proportional representation of the discounts that she obtained from haggling by physically cutting off parts of the objects (22). The artist-surgeon made the objects’ devaluation apparent in the form of injuries or wounds, or in the punishment of a mutilation. By retaining that title for her intervention into the apparatus of the auction during the 2010 São Paulo 

      Biennial, Rosângela Rennó wanted to give some indication that the new action would have a complementary function. In this case, though, the arbitrariness of deflation-inflation would appear less like a castration than like the sensation of a sort of “phantom limb”, in the form of value apparently created ex nihilo by the immaculate serial conception of “artworks”. Another sign of the arbitrariness of the sign; another certified copy of the conceit of the relationship between cultural object and commercial object that implicates art as a commodity. 

      But a paradoxical redemption just barely fits within that final arbitrariness, one that understands that the absence of justice in price is also the signal of the impossibility of closing the circuit of changes in the ascription of objects’ meanings. In fact, in his fragmentary meditations on the enchantment of the commodity, Walter Benjamin discerned an analogy between the impossibility of predicting economic value, and the impossibility of closing the cycle of an object’s meaning, as a double expression of the “metaphysical subtleties” of the commodity: 

      How the price of goods in each case is arrived at can never quite be foreseen, neither in the course of their production nor later when they enter the market. It is exactly the same with the object in its allegorical existence. At no point is it written in the stars that the allegorist’s profundity will lead it to one meaning rather than another. And though it may once have acquired such a meaning, this can always be withdrawn in favor of a different meaning. The modes of meaning fluctuate almost as much as the prices of commodities. In fact, the meaning of the commodity is its price; it has, as commodity, no other meaning. Hence, the allegorist is in his element with commercial wares (23).
       
      Minus-Value [Auction] puts the allegorical art of the price tag into action. As Benjamin would have wanted, Rosângela Rennó aspires to teach us to cultivate a special form of hermeneutics: to make us run through the transmutations of price as part of one and the same dialectic that establishes, provisionally, the alchemy of affect and meaning. This is the vision of the ghost of murdered photography, who contemplates the “hell” of transformations and oscillations that beats in the heart of the work of art as hyper-commodity


      1. Salvador Novo, “En defensa de lo usado”, in Viajes y ensayos, Mexico City, Fondo de Cultura Económica, 1996 [1938], tomo i, p. 92.
      2. “Van Gogh found at flea market”, CNN, 12/11/2003.  “Van Gogh sale delayed for checks”, BBC, 12/12/2003. 
      3. “Indonesian art ‘finds’ leave critics groaning”. The Guardian, 11 / 24 / 2000. 
      4. “Flea market sketch a genuine Picasso”. The Montreal Gazette, 12 / 11 / 1984. 
      5. “Are these the lost van Goghs?”. The Art Newspaper, n. 141, 11 / 11 / 2003. 
      6. Octavio Paz, Claude Lévi-Strauss: An Introduction, trans. by J. S. Bernstein and Maxine Bernstein. Ithaca: Cornell University Press, 1970, p. 36. 
      7. Walter Benjamin, The Arcades Project, trad. Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Cambridge, MA, London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 209. (H3, 2)
      8. S. Novo, op. cit., p. 93.
      9. André Breton, Nadja, trans. by Richard Howard. New York. Grove Press, 1960, p. 52. 
      10. This dual resonance is lost in English. The artist’s title strikes a balance between the standard translation of Marx’s term Mehrvert (“surplus value”), in Spanish, as plusvalía, and the colloquial Spanish term for human disability, minusvalía. [n.t.]
      11. “What we used to call art begins at a distance of two meters from the body. But now, in kitsch, the world of things advances on the human being; it yields to his uncertain grasp and ultimately fashions its figures in his interior.” Walter Benjamin, “Dream Kitsch”, in Selected Writings, vol. 2: 1927-1934, trans. by Rodney Livingstone. Cambridge, ma / London, England, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, pp. 4-5. 
      12. See Pierre Bourdieu, “The Production of Belief: Contribution to an Economy of Symbolic Goods”, in The Field of Cultural Production: Essays on Art and Literature, edited by Randal John- son, trans. by Richard Nice. New York: Columbia University Press, p. 74ff. 
      13. Jean Baudrillard, For a Critique of the Political Economy of the Sign, trans. by Charles Levin. St. Louis: Telos Press, 1981, p. 117. 
      14. Karl Marx, Collected Works of Karl Marx and Friedrich Engels, v. 28: Karl Marx: 1857-1861, trans. by Ernst Wangermann. New York: International Publishers, 1986, p. 87.
      15. Sarah Thornton, Seven Days in the Art World. New York / London: W. W. Norton / Company, 2008, p. 30. 
      16. The obvious exception to this is in the grotesque limit of artists whose works bristle with diamonds in order to make the cost of the material commensurate with that of the setting. But such objects are already degraded in their initial artistic nullity.
      17.  S. Thornton, op. cit., p. 11. 
      18. J. Baudrillard, op. cit., p. 116. 
      19. Id., ibid., p. 121. 
      20. As is well known, “fictitious capital” is the term that Marx coined to describe the creation of interest-bearing capital, which appears “as a self-regulating automaton, as a mere number that increases itself” without any connection to the process of production. (Karl Marx, Collected Works of Karl Marx and Friedrich Engels, vol. 37: Capital, vol. iii, trans. Ernest Untermann et al., New York, International Publishers, p. 393.) 
      21. In translation these terms have shed the etymological root that connects diversión (fun, recreation) to inversión (investment). [n.t.] 
      22. See Rosângela Rennó: Frutos estranhos. Lisbon: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 234. 
      23. W. Benjamin, The Arcades Project, p. 369 [J80,2; J80a,1]. 


      MEDINA, Cuauhtémoc. Mythologizing with the hammer. In: RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]: Rosângela Rennó. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 288-315. 


      O museu das insignificâncias: a memória, a arte e os restos da derrota


      Textos relacionados ao trabalho


      Texts linked to the work Minus-value [auction]


        • Primeiro contemplei no tocador as pequenas joias, as loções e os objetos que usava. Peguei-os e os olhei. Dei-lhe voltas e voltas na mão ao seu diminuto relógio. Depois olhei o armário. Todas aquelas roupas e aqueles acessórios, empilhados uns sobre os outros. Os objetos que completam a todo ser me produziram uma solidão e uma dor terríveis e a sensação e o desejo de ser seu.

        AHMET HAMDI TANPINAR 


        I. 
        Não é o museu o que me interessa, o que me interessa são as insignificâncias e sua existência precária. Afinal, quem ou o que pode determinar a significância ou a insignificância das coisas? Os objetos descartados, perdidos ou esquecidos perdem o valor de uso, mas ganham, em poder de sugestão, um acréscimo que os coloca em algum lugar entre a relíquia e o testemunho, que os afasta da insignificância e os impregna de sentidos íntimos e pessoais, mas que, paradoxalmente, são uma e outra vez compartilhados. 

        No Museu Quinta de Bolívar, na cidade de Bucaramanga, nordeste da Colômbia, há, numa vitrine, um peinetón: um grande pente convexo de tartaruga que, na época colonial, as mulheres usavam como enfeite de cabelo, sob a mantilha de rendas. A legenda sob a vitrine diz: "Peinetón usado por una mujer que danzó con el libertador Simón Bolívar."(1) E imaginamos - criamos imagens - o garboso oficial, a bela mulher (tem que ter sido bela), os salões iluminados com velas. O pente é quase uma antiguidade, mas o que importa não é seu desenho, nem o material do qual é feito, nem a ocasião em que foi usado, nem sequer a identidade dessa mulher que dançou com o libertador. O significado da bela peça decorada está todo neste homem: Simon Bolívar, el libertador, que dançou com a mulher anônima. 

        Se considerarmos que uma relíquia é um objeto associado a um santo, ou a uma pessoa considerada santa, o peinetón é uma relíquia pois, de acordo com o ritual católico, as relíquias podem ser de três graus: 

        1º grau: Um fragmento do corpo santo, 
        2º grau: Um fragmento da roupa ou de algo que o santo usara durante sua vida, e 
        3º grau: Qualquer objeto que tenha sido tocado pelo santo. 

        Uma relíquia, então, de quarto grau, porque Simón Bolívar dançou, apertou a mão, enlaçou a cintura da dama que usava el peinetón. Sem encarnar a divindade das relíquias, todos os objetos que usamos ao longo da vida nunca perdem o encanto que nos fez desejá-los; esse encanto, porém, se transforma em amargura, em saudade, em melancolia. Na imensa melancolia que parece se desprender das coisas velhas, não das antiguidades, das coisas velhas: as cortinas de macramê da casa paterna, o rádio de baquelita, o leque de papel, o aquecedor a querosene, os botões de madrepérola, os vestidos tubinho, a máquina de escrever, filmadoras super-8, câmeras fotográficas agora inúteis, gravadores de fita cassete. Já há alguns anos – desde o final dos anos 1980, talvez – os mercados de pulgas foram se transformando em brechós, que se multiplicaram, deixaram de ser frequentados pelos pobres para, pouco a pouco, atrair jovens estudantes, neodândis ou moçoilas enfastiadas. A palavra modernariato, neologismo criado a partir do italiano antiquariato, começou a difundir-se junto com o termo vintage, que provém da enologia, para designar os objetos- -fetiches do século passado.

        Mas a reabilitação e o uso desses objetos, a meio caminho entre cadáver putrefato e relíquia do corpo consagrado, começou a aparecer nas colagens e assemblages surrealistas. Porque, para Benjamin, o surrealismo 

        [f]oi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem no "antiquado", nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los. Esses autores compreenderam melhor que ninguém a relação entre esses objetos e a revolução. (2) 

        A estética do mercado de pulgas (e sua ética) consistiria em substituir o olhar histórico sobre o passado por um olhar político, tal como queria Walter Benjamin. De acordo com o filósofo, os surrealistas descobriram como, nos objetos fora de moda e nas coisas "escravizadas e escravizantes", estavam latentes energias reprimi- das que podiam explodir em "niilismo revolucionário". (3) 

        Na atualidade, corre-se o risco de que o fora de moda que está novamente em moda como no modernariato e no vintage - esgote suas energias reprimidas ao ser atualizado pelas múltiplas e indiferenciadas demandas de memória. Hoje, podemos somar às ruínas da burguesia – cujas cinzas ainda estão quentes – as ruínas fumegantes da classe média urbana e por que não? as do futuro do proletariado da primeira metade do século XX. (4)

        Modernariato, vintage, memorabilia, suvenires: objetos de desenho, joias, roupas, material escolar, rótulos de produtos, películas, fotografias, livros, postais da Grande Guerra, da Segunda Guerra, do primeiro governo peronista, da Revolução Cubana, da Jovem Guarda, da Guerra Fria, da Conquista do Espaço, da Alemanha Oriental, da União Soviética... A cultura contemporânea parece estar sempre em confronto com os signos que criou, desenvolveu e destruiu para se perpetuar. Reprimidos, talvez esquecidos, porém ainda sobreviventes, esses signos conservariam o poder de reacender as cinzas para se incendiar nas ânsias do sonho utópico que os viu nascer. 


        II. 
        Em Montevidéu, Uruguai, longe do centro, se encontra o Museu da Memória. Ocupa a Quinta de Santos, um palacete de verão que pertenceu ao ditador Máximo Santos, que governou o país entre 1882 e 1886. Trata-se de uma residência luxuosa no meio de amplos jardins, onde se encontra um pequeno castelo que servia de casa de bonecas para as filhas do ditador, um zoológico cercado de grades, a leonera (5), de triste fama, pavilhões para a criação de pássaros exóticos, uma gruta artificial atravessada por corredores labirínticos e iluminada com luz de gás, fontes, estátuas, cascatas artificiais... 

        Nessa casa, a memória das ditaduras recentes, ainda que em ruínas, se materializa em uma coleção de objetos residuais que, por sua modéstia extrema, parecem ser indignos de ocupar qual- quer vitrine. Abundam as fotos, muitas vezes grandes ampliações de pequenas imagens extraídas da imprensa da clandestinidade, um punhado de uniformes carcerários, portas de celas, panelas de alumínio usadas, a impressora de uma gráfica clandestina, algumas bandeiras, poucos panfletos. O que causa mais emoção, entretanto, o que marca mais o breve passo do tempo são os objetos insignificantes que, destinados ao descarte ou ao esquecimento, testemunham a resistência dos uruguaios durante a ditadura. 

        VITRINE 1: Esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz, panfletos manuscritos, boletins reproduzidos em mimeógrafo a álcool. A legenda explica: “Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos, bombas de alquitrán, panfletos y diarios de la resistencia." (6) 

        VITRINE 2: Cinto masculino de couro sobre um diário onde se lê “El drama de la madre de Castagnetto” (7) e a notícia do desaparecimento do militante Héctor Castagnetto, sequestrado pelas forças paramilitares. 

        VITRINE 3: Uma pequena caixa de latão que contém um caderninho escrito com letra diminuta. A legenda diz: “Hojas donde se escribió, copiado, el libro ‘Historia del Partido Comunista Vietnamita' Ismael Bassin, hecho en el Penal de Libertad." (8) 

        VITRINE 4: Sobre saquinhos de papel de seda, estão expostos adornos feitos pelos presos políticos: uma cruz, uma aliança, uma agulha, uma pulseira, um anel de sinete e vários medalhões, todos talhados em osso. Há também pequenas esculturas e baixos-relevos feitos em barras de sabão. 

        A instalação museológica organiza os objetos como se fossem obras de arte, o que lhes confere um encanto inicial, pois estamos longe da aridez de um museu histórico. O efeito do fora de moda se potencializa na consciência daqueles que (como eu) viveram esse passado sem nunca esperar ver tais objetos elevados à categoria de objeto museificado. 

        Há uma estranha suspensão de valores na exibição das armas rudimentares dos resistentes – não são espadas, nem fuzis, nem metralhadoras –, e, ainda que reconheçamos sua modesta eficácia, passa rapidamente por nossa mente a pergunta sobre seu possível uso no século XXI. O coquetel-molotov evoca o espectro de um século XX que nunca cessa de acabar. 


        III.
        Na página Memoria Abierta, inaugurou-se recentemente uma seção nomeada "Vestigios, un ensayo de transmisión através de los objetos" (9). Os organizadores da página propõem duas questões fundamentais: se os objetos podem estabelecer relações entre passado e presente, e se podem ser utilizados como ferramentas para a transmissão da memória. 

        Essa proposta busca explorar a capacidade que têm os objetos para estabelecer relações entre passado e presente, de maneira que possam ser utilizados como veículos para a transmissão da memória e que, ao mesmo tempo, promovam o debate e a reflexão. (10) 

        Com esse propósito, revelam e colocam na página fotografias de objetos daqueles anos, que familiares e amigos de vítimas da última ditadura militar conservaram. Cada objeto é acompanhado por um relato que o identifica e contextualiza. 

        Duas vezes vestígio, porque restos e porque fotografias, o que a página exibe são fotos de objetos deixados pelos militantes mortos ou desaparecidos e que são estimados como relíquias por seus parentes e amigos. Essas imagens - fotos de família, cadernos e livros escolares, discos, objetos feitos na prisão, memorabilia peronista - encerram e ativam a memória pessoal e afetiva que muitas vezes está ausente dos relatos históricos. 


        IV.
        O escritor turco Orhan Pamuk acabou de inaugurar o Museu da Inocência, situado em um prédio do século XIX, no bairro de Çukurcuma, Istambul. Museu da Inocência é também o nome do último romance do autor, que narra a história do amor impossível de Kemal, filho de uma rica família burguesa, por Füsun, sua prima distante, muito mais nova que ele, bela e pobre. No final do longo relato, Kemal, que foi colecionando objetos ligados a Füsun, decide exibi-los no Museu da Inocência, um monumento em memória da juventude perdida. 

        Kemal conserva amorosamente cada relíquia de Füsun que pôde guardar ou roubar: o brinco que ficou entre os lençóis no dia do primeiro encontro, o saleiro que ela, uma vez, tocou, o pequeno cachorro de porcelana que ficava em cima do televisor da sua casa, o triciclo que a família de Kemal emprestou aos parentes pobres, o ralador de marmelo, 4.213 guimbas de cigarro, 237 fivelas de cabelo, 419 bilhetes da loteria nacional, lenços, ingressos de cinema, caroços de azeitona... O museu é o santuário de uma vida desperdiçada, onde os objetos escamoteados estão, como relíquias do corpo de Füsun, a lembrar os momentos em que Kemal estivera próximo da amada. 

        Lembro com imensa alegria que uma vez tomei com meu garfo uma das pequenas almôndegas morenas do seu prato e a pus na boca, quando, falando disto ou daquilo, me perguntou “Quer prová-las?", e outra, de novo induzido por ela, as azeitonas que apartava ao lado do prato, cujos caroços exponho aqui." (11) 

        Como o personagem de seu livro, o escritor organizou um museu de objetos ordinários em 83 vitrines, que correspondem a cada um dos 83 capítulos do romance. Negar Azimi, editora-chefe de Bidoun, uma revista sobre arte e cultura do Oriente Médio, sediada em Nova York, relata que Pamuk lhe disse que necessitava desses objetos para escrever seu relato: 

        Minhas percepções, ou você pode dizer, minhas antenas, estão atentas a tudo nas vitrines das lojas, nas casas dos amigos, nos mercados de pulgas e nos antiquários. Assim foi como o Museu da Inocência veio à tona. (12) 

        Como Kemal fizera no romance, durante anos Pamuk percorreu centenas de museus como o recém-inaugurado Museu da Inocência: longínquos, desconhecidos, esquisitos, assustadores monumentos dedicados a vidas insignificantes, a histórias ordinárias. "Meu romance honra os museus onde ninguém vai, aqueles nos quais você pode ouvir o som dos seus próprios passos. "(13) 

        O sentimento que impregna esses museus é identificado por Pamuk como hüzün. Em Istambul (14), Pamuk dedica um capítulo à palavra turca hüzün, que costuma ser traduzida por melancolia. Hüzün, que tem origem árabe, carrega em si um significado teológico de perda espiritual profunda, angústia e luto. Para o sufismo, hüzün é a angústia espiritual que se sente ante a impossibilidade de se aproximar ainda mais de Deus. Como a melancolia, hüzün é um estado de alma sombrio, entre elegíaco e nostálgico, um sentimento de fracasso terreno e, ao mesmo tempo, de indiferença. O Museu da Inocência, suas páginas e suas vitrines, onde os objetos, isolados do relato, livres talvez dele, estão a contar não somente a história de Kemal e Füsun, mas todas as histórias de amor, é o território do hüzün


        V.
        a) Em uma foto, vemos um rapaz que levanta no ar um bebê de menos de um ano. O rapaz sorri, a criança olha assustada. Abrem-se outras: em uma, o jovem abraça o menino contra seu peito; na terceira, a família completa: mãe e pai sorriem com o bebê nos braços. 

        Essas fotos foram tiradas em uma quinta em San Miguel onde estávamos clandestinos meu marido, meu filho e eu. Meus sogros também tinham vindo de Mendoza e estavam vivendo conosco. Alguns dias antes, meu cunhado havia desaparecido. Vivíamos em uma casa muito simplesinha, em frente havia um arvoredo e atrás outra casa onde viviam meus sogros. Era uma região de quintas, daí havia vizinhos, e por isso queríamos dar a impressão de sermos uma família muito normal. Assim, combinamos fazer um dia de visita familiar no qual veio minha irmã, os filhos etc. Todos chegaram escondidos para que não soubessem onde estava a casa. Minha irmã trouxe uma câmera e aproveitamos para tirar muitas fotos. Isso era janeiro de 1976 e meu marido desapareceu seis meses depois. Essa é a única foto que temos de nós dois com nosso filho. (15) 

        b) Na vitrine veem-se esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz, panfletos manuscritos, boletins reproduzidos em mimeógrafo a álcool. A legenda explica: "Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos, bombas de alquitrán, panfletos y diarios de la resistencia."

        c) O Museu da Inocência - últimos parágrafos-, os personagens olham, sob a pálida luz da rua, uma fotografia: 

        Ambos olhamos a fotografia de Füsun com um maiô negro no qual levava o número 9, com respeito, amor e admiração, por seus braços cor de mel, seu nada alegre rosto, pelo contrário, bem triste, seu corpo maravilhoso e a intensidade humana e a espiritualidade que nos maravilhavam trinta e quatro anos justos depois que tiraram a fotografia. 

        - Por favor, ponha essa foto no seu museu, Kemal Bey... (16) 

        d) As fotos de cinco porta-retratos empilhados comprados na Cidade do México: aquele que está por cima mostra o retrato de um menininho, o seguinte deixa adivinhar a imagem de uma menina, depois as imagens estão cobertas e só se veem marcos dourados. Não se sabe quem são essas crianças, onde estão; adivinhamos por suas roupas que já não devem mais estar vivas. 

        LOTE 16 
        EMPILHAMENTO DE PORTA-RETRATOS 
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        L.I. 130,00 
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        30X22X8 CM 


        VI.
        Nos anos 1970, Christian Boltanski deu início aos seus Inventários. Tudo começou com uma carta manuscrita que o artista enviou em janeiro de 1973 a vários museus de história e ciências naturais e a vários curadores que conheciam sua obra. 

        Eu gostaria de apresentar a vocês, em uma das salas do seu museu, todos os objetos que rodearam uma pessoa durante sua vida, os quais, depois de sua morte, restam como testemunhos de sua existência. [...] Todos esses elementos devem ser apresentados em vitrines e cuidadosamente classificados. (17)

        Um dos primeiros a responder foi o Staatliche Kunsthalle em Baden-Baden, que realizou o projeto e mostrou os objetos de uma mulher que tinha morrido recentemente. Outras cinco versões foram montadas entre 1973 e 1974, entre elas Inventário dos objetos que pertenceram a um residente de Oxford (Museum of Modern Art, Oxford) e Inventário dos objetos que pertenceram a umа mulher de Bois-Colombes (Centre National d'Art Contemporain - CNAC, Paris)

        (…) Na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, no primeiro pavimento, em um pequeno espaço delimitado por duas paredes debaixo do mezanino, encontrava-se a instalação Menos-valia (leilão), de Rosângela Rennó, que constava de 73 objetos dispostos nas paredes e sobre uma mesa escalonada que ocupava o centro da sala. Cordões de isolamento separavam os objetos dos visitantes. Cada objeto estava perfurado e por esse furo passava uma corrente fina que sustentava uma plaqueta na qual se lia o nome da artista, o nome da instalação e o lugar onde o objeto fora adquirido. Uma placa na parede esclarecia que os objetos seriam leiloados em data próxima ao final da 29ª Bienal, pelo leiloeiro oficial Aloísio Cravo, especializado em pintura brasileira. 

        O trabalho Menos-valia (leilão) já havia sido realizado - como um ensaio piloto com o título de Menos-valia (subasta) – no Museo Universitario de Arte Contemporáneo (Muac) da Unam, dentro da programação do evento Jardín de Academus, organizado e curado pelo artista mexicano José Miguel Casanova.

        Esse leilão, realizado em maio de 2010, investigava as possibilidades de atribuir um valor de exposição legitimado a objetos comprados nos tianguis da Cidade do México. Os lotes incluíram objetos variados, não apenas relacionados ao campo da imagem técnica. O que todos tinham em comum era estar à venda nos mais humildes mercados de usados e, talvez, uma certa aparência carinhosamente kitsch. No muro do museu e sobre a mesa de exposição, coberta de veludo vermelho, havia brinquedos infantis, bibelôs, frascos de vidro, mas também porta-retratos, visores estereoscópicos, fotografias emolduradas. 

        Em São Paulo, a artista montou 73 objetos nos quais usou como matéria-prima equipamentos fotográficos e filmográficos descartados, comprados nos mercados de pulgas mais pobres de dois continentes. Em suas derivas pelas feiras de Montevidéu, Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, pelos tianguis do México, por El Rastro de Madri ou pelo marché aux puces de Paris, Rennó coletou câmeras fotográficas, carrosséis, visores e projetores de slides, dispositivos de estereoscopia, lanternas mágicas, praxinoscópios, microscópios, telescópios, binóculos, lunetas, lupas, espelhos, quebra-cabeças, silhuetas, álbuns de fotos, retratos, porta-retratos e também velhas fotografias.

        Na figura contemporânea do artista nômade, à deriva entre centros e periferias, subsiste a imagem modernista do trapeiro - o catador - à deriva também entre o centro e a periferia da cidade para juntar o lixo dos que têm lixo para jogar. 

        Esse paradigma do artista como herói da modernidade se desdobra, para Baudelaire, numa corte orgulhosa de despossuídos: o esgrimista, o salteador, o apache, mas sobretudo o trapeiro.

        [...] tem de recolher na capital o lixo de cada dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória: separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede, como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa Indústria, vai adotar a forma de objetos úteis e agradáveis. (18)

        "Baudelaire percorria seu bairro e a cidade com um andar aos trancos, nervoso e lânguido ao mesmo tempo, como o de um gato, escolhendo cada paralelepipedo como se evitasse esmagar um ovo."(19) Esse andar abrupto de Baudelaire que Nadar descreve – nos fala Benjamin –, seria “o passo do poeta que erra pela cidade à cata de rimas", (20) um andar de trapeiro, que se interrompe, a todo instante, para escolher e guardar objetos ou pensamentos descartados. 

        O trapeiro é também um colecionador: coleciona “os anais da devassidão, o cafarnaum da escória”, os restos das catástrofes que flutuam atrás de nós em pura perda. As coisas que o trapeiro resgata desse limbo, que nem sequer são ruínas, serão transformadas, pois, diferentemente do colecionador, ele não amealha para si, apenas recolhe e encaminha.

        Com elegância, delicadeza e, às vezes, humor, Rosângela Rennó montou esses restos e os transformou em objetos-fetiches, obje- tos-relíquias: objetos ambiguos que deslizam do sagrado ao profano, do sublime ao grotesco, da ironia à melancolia. Por acaso não é melancólico o sorriso que esboçamos ao ver aquela câmera fotográfica que tanto desejamos décadas atrás enclausurada em uma vitrine que a conserva e a alija de nós, como se fosse uma tânagra ou um pequeno hipopótamo egípcio de cerâmica vitrificada?

        Em cada objeto se sobrepõem camadas de recordações. É possível que a primeira percepção seja a escassa temporalidade das coisas em si, porém, a partir desse dado, começam a brotar as memórias do uso, das condições de uso, do lugar onde foi comprada, das imagens que quase sempre vêm junto, das situações cotidianas nas quais se incluíram e, por fim - last but not least -, da preexistência mnemônica de obras da própria artista e de outros artistas.

        Os objetos de Menos-valia (leilão) ativam a memória e, inconscientemente, a modificam, porque a hipotética memória primeira se acresce à memória do objeto evocado. Nesse processo de subtextualidade de "imagens mnemônicas anteriores", (21) que não é citação e muito menos pastiche - no sentido de transmissão de elementos visuais, reside o fundamento de uma tradição artística.

        Defronte da instalação, se percebe que vários objetos evocam obras anteriores de Rennó como Realismo fantástico, Puzzles [homem e mulher], Arquivo universal, In oblivionem, série Vulgo, série Vermelha, Cartologia, Bibliotheca, Corpo da alma e A última foto, nomeando-os em ordem cronológica. Alguns objetos passeiam pela fotografia do século XIX, pela fotografia surrealista, pela jornalística ou pelo voyeurismo das fotografias pornográficas. Sobre outros objetos, flutuam alusões aos bichos de Lygia Clark, a um Bólide de Hélio Oiticica – a inesquecível foto de Mosquito da Mangueira com as mãos no rosto, olhando o Bólide Luz 1, Apropriação 3, plastiscope, 1966 –, aos agrupamentos de fotografias de Annette Messager. Um sentido sutil de ridículo impregna os objetos perfeitos que Rosângela constrói com elementos populares de sua geração: os abajures feitos com os carrosséis de diapositivos dos projetores Kodak, coroados por cúpulas como as que se usavam nas construções populares dos anos 1980, ou os simulacros de televisores montados com visores de meio quadro, como os que os fotógrafos de rua vendiam na mesma época. Objetos simples que evocam o consumo de imagens da classe média baixa no saudoso kitsch daquela década – não inteiramente perdida.

        No texto que introduz o trabalho, a artista evoca uma nova disciplina: a Ruinologia

        [n]o campo das ideias, Menos-valia [leilão] pode ser compreendida, também, como uma das práticas contemporâneas mais fortemente vinculadas às atuais teorias da Ruinologia, como a do "recuperacionismo ativo de transformação", entre outras consolidadas recentemente. (22)


        As ruínas que Rennó recupera são restos de um passado mais ou menos próximo, resíduos da vida moderna que ainda parece existir e proliferar, cada vez mais degradada, nas periferias pobres de nossas cidades opulentas. O que move a artista é um sentimento melancólico que não se regozija no perdido, mas que aceita a perda e a torna produtiva. 

        As ruínas perturbam porque anunciam a iminente perda de sentido que ameaça toda obra humana, mas essa falha na significância (essa insignificância) transforma-se numa vertiginosa proliferação discursiva. Na Renascença, os restos arquitetônicos das antigas civilizações adquiriram o estatuto de testemunhos, ainda vivos, de tempos mais gloriosos. Objetos e fragmentos de objetos do passado, sem significado nem função, foram investidos com valores estéticos, políticos ou históricos do presente. Os objetos de Rosângela Rennó apontam para pontos cegos na indagação sobre sua própria origem; são lugar onde se confrontam estratégias de reflexão que podem nos dizer mais sobre quem as olha que sobre o que é olhado. 


        1. "Pente ornamentado usado por uma mulher que dançou com o libertador Simón Bolívar" (tradução livre). Devo essa informação ao dr. Adolfo Cifuentes. 
        2. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política - Ensaios sobre literatura e a história da cultura. Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 25. 
        3. 3 Idem. 
        4. Cf. FOSTER, H. “This Funeral is for the Wrong Corpse”. In: Design & Crime. Londres: Verso, 2002, p. 139.
        5. Um fosso onde o ditador criava leões e, dizem, costumava jogar seus opositores.
        6.  "Esferas e munições para fazer com o que os cavalos escorreguem, armadilhas de pregos soldados, bombas de alcatrão, panfletos e diários da resistência” (tradução livre). 
        7. 7 "O drama da mãe de Castagnetto" [tradução livre]. 
        8. "Folhas onde se escreveu, copiado, o livro 'História do Partido Comunista Vietnamita' Ismael Bassin, feito na Penitenciária de Libertad” [tradução livre].
        9.  Disponível em: http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios
        10.  Idem (tradução livre).
        11.  PAMUK, O. O Museu da Inocência. Barcelona: Ladrões, 2009, p. 418 [tradução livre]
        12.  PAMUK, O. apud AZIMI, N. “Os Objetos do Exercício”. Nova York: The New York Times, 1º de novembro de 2009. 
        13. Idem.
        14. PAMUK, O. O Museu da Inocência. Barcelona: Mondadori. 2009, pág. 100.
        15. http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios/objeto.php?id=81 [tradução livre].
        16.  PAMUK, O., op. cit., pág. 641.
        17. BOLTANSKI, C. apud GUMPERT, L. Christian Boltanski. Paris: Flammarion, 1994, p. 41.
        18. BAUDELAIRE, C. apud BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico do auge do capitalismo. Obras escolhidas, v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79. 
        19. Cit. em Firmin Maillard, La cité des Intellectuels. Paris, 1905, p. 362 apud BENJAMIN, W. Passagens. BOLLE, W. (org) Belo Horizonte / São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 227. 
        20. BAUDELAIRE, C. apud BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico do auge do capitalismo. Obras escolhidas, v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79. 
        21. FOSTER, H., op. cit., p. 67. 
        22. Texto de apresentação de Menos-valia (leilão), de Rosângela Rennó. Texto de parede na 29ª Bienal de São Paulo


        MELENDI, Maria Angélica. O museu das insignificâncias: a memória, a arte e os restos da derrota. In MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017, pp. 357-374.

        Texto originalmente publicado em: FLORES, Maria Bernadete Ramos; PETERLE, Patrícia (orgs.). História e arte, imagem e memória. Campinas: Mercado das Letras, 2012.


        Modelos para armar

        Do it yourself kits

        Textos relacionados ao trabalho


        Texts linked to the work Minus-value [auction]


          Sólo se vuelve artístico – sólo se politiza – lo que caduca o está atrasado.

          Ricardo Piglia 


          MODELO I: DAS INSIGNIFICÂNCIAS 

          • Por qué, a ciertas horas, es tan necesario decir: “Amé esto?”. Amé unos blues, una imagen en la calle, un pobre río seco del norte. Dar testimo- nio, luchar contra la nada que nos barrerá. Así quedan todavía en el aire del alma esas pequeñas cosas, un gorrioncito que fue de Lesbia, unos blues que ocupan en el recuerdo el sitio menudo de los perfumes, las estampas y los pisapapeles.

          Julio Cortázar 

          I. 
          Uma imensa melancolia parece se desprender das coisas velhas, não das antiguidades, das coisas velhas: as cortinas de macramê da casa paterna, o rádio de baquelita, o aquecedor a querosene, os botões de madrepérola, os vestidos tubinho, antigas fotografias familiares, filmadoras super-8, câmeras fotográficas agora inúteis, gravadores de fita cassete. De alguma maneira, os objetos que usamos ao longo da vida não conseguem perder o encanto que tiveram quando novos; encanto que, entretanto, se transforma em nostalgia, amargura ou desejo. 

          Já há alguns anos – desde o final dos anos 1980, talvez – os mercados de pulgas foram se transformando em brechós, que se multiplicaram e deixaram de ser frequentados pelos pobres para, pouco a pouco, atrair jovens estudantes, neodân- dis ou moçoilas enfastiadas. A palavra modernariato, neologismo criado a partir do italiano antiquariato, começou a difundir-se junto com o termo vintage, que provém da enologia, para designar objetos-fetiche do século passado. 

          O uso desses objetos, a meio caminho entre cadáver e relíquia do corpo consagrado, começou a aparecer em colagens e assemblages surrealistas. Porque o surrealismo, 

          foi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem no “antiquado”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los. Esses autores compreenderam melhor que ninguém a relação entre esses objetos e a revolução. (1)

          A estética do mercado de pulgas (e sua ética) consiste em substituir o olhar histó- rico sobre o passado por um olhar político, tal como queria Walter Benjamin, para quem os surrealistas descobriram como, nos objetos fora de moda e nas coisas “escravizadas e escravizantes”, estavam latentes energias reprimidas que podiam explodir em “niilismo revolucionário”. (2) 

          Na atualidade, corre-se o risco de que o fora de moda, que está novamente em moda – como no modernariato e no vintage – perca suas energias reprimidas ao ser atualizado pelas demandas indiferenciadas de memória. Às ruínas da burguesia, cujas cinzas ainda estão quentes, podemos somar as ruínas fumegantes da classe média urbana e – por que não? – as do futuro do proletariado da primeira metade do século xx. (3) 

          Modernariato, vintage, memorabilia, souvenirs: objetos de desenho, joias, roupas, material escolar, rótulos de produtos, películas, fotografias, livros, postais da Segunda Guerra, do primeiro governo peronista, da Revolução Cubana, da Jovem Guarda, da Alemanha Oriental, da União Soviética, da Guerra Fria, da conquista do espaço... A cultura contemporânea parece estar sempre em confronto com os signos que criou, desenvolveu e destruiu para se perpetuar. Reprimidos, talvez esquecidos, porém ainda vivos, esses signos conservam, todavia, o poder de reacender as cinzas e incendiar as ânsias do sonho utópico que os viu nascer. 

          II. 
          Na 29a. Bienal de São Paulo, em 2010, no primeiro pavimento, em um pequeno espaço delimitado por duas paredes, encontrava-se a instalação Menos- -valia [leilão] de Rosângela Rennó, que constava de 73 objetos dispostos sobre as paredes e sobre uma mesa escalonada que ocupava o centro da sala. Cordões de isolamento separavam os objetos dos visitantes. Cada objeto estava perfurado e por esse furo passava uma corrente fina que sustentava uma plaqueta na qual se lia o nome da artista, o nome da instalação, um número atribuído ao objeto e o lugar onde ele fora adquirido. Uma placa na parede esclarecia que os objetos seriam leiloados em data próxima ao fim da 29a. Bienal, pelo leiloeiro oficial Aloisio Cravo, especializado em pintura brasileira. 

          A artista montou 73 objetos nos quais usou como matéria-prima equipamentos fotográficos e filmográficos descartados, comprados nos mercados de pulgas mais pobres de dois continentes. Em suas derivas pelas feiras de Montevidéu, Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, pelos tianguis do México, por El Rastro de Madri ou pelos marchés aux puces de Paris, Rosângela Rennó coletou câmeras fotográficas, carrosséis, visores e projetores de slides, dispositivos de estereoscopia, lanternas mágicas, praxinoscópios, microscópios, telescópios, binóculos, lunetas, lupas, espelhos, quebra-cabeças, silhuetas, álbuns de fotos, retratos, porta-retratos e também velhas fotografias. 

          Na figura contemporânea do artista nômade, à deriva entre centros e periferias, subsiste a imagem modernista do trapeiro – o catador – à deriva também entre o centro e a periferia da cidade para juntar o lixo dos que têm lixo para jogar. 

          O paradigma do artista como herói da modernidade se desdobra, para Charles Baudelaire, numa corte orgulhosa de despossuídos: o esgrimista, o salteador, o apache, o trapeiro, que 

          tem de recolher na capital o lixo de cada dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória: separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede, como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que entre as maxilas da deusa Indústria, vai adotar a forma de objetos úteis e agradáveis. (4)

          O andar abrupto de Baudelaire que Félix Nadar descreve – “Baudelaire percorria seu bairro e a cidade com um andar aos trancos, nervoso e lânguido ao mesmo tempo, como o de um gato, escolhendo cada paralelepípedo como se evitasse esmagar um ovo” (5) –, diz Benjamin, seria “o passo do poeta que erra pela cidade à cata de rimas” (6), um andar de trapeiro, que se interrompe, a todo instante, para escolher e guardar os objetos descartados. 

          O trapeiro é também um colecionador: coleciona “os anais da devassidão, o cafarnaum da escória”, os restos das catástrofes passadas que flutuam diante de nós em pura perda. As coisas que o trapeiro resgata desse limbo, que nem sequer é ruína, serão transformadas, pois, à diferença do colecionador, ele não amealha para si, apenas recolhe e encaminha. 

          Com elegância, delicadeza e humor, Rosângela Rennó montou esses restos e os transformou em objetos-fetiche, objetos-relíquia: objetos ambíguos que deslizam do sagrado ao profano, do sublime ao grotesco, da ironia à melancolia. Acaso não é melancólico o sorriso que esboçamos ao ver aquela câmera fotográfica que tanto desejamos décadas atrás, enclausurada em uma vitrine que a conserva e a alija de nós, como se fosse uma tânagra ou um pequeno hipopótamo egípcio de cerâmica vitrificada? 

          Em cada objeto se sobrepõem camadas de recordações; é possível que a primeira percepção seja a escassa temporalidade da coisa em si, porém, a partir desse dado, começam a brotar as memórias do uso, das condições de uso, do lugar onde foi comprada, das imagens que quase sempre vêm junto, das situações cotidianas nas quais se incluíram e, por fim – last but not least –, da preexistência mnemônica de obras da própria artista e de outros artistas. 

          Os objetos de Menos-valia [leilão] ativam a memória e, in- conscientemente, a modificam, porque a hipotética memória primeira se acresce à memória do objeto evocado. Nesse processo de subtextualidade de “imagens mnemônicas anteriores” (7) que não é citação e muito menos pastiche – no sentido de transmissão de elementos visuais –, reside o fundamento de uma tradição artística. 

          Diante da instalação, percebe-se que vários objetos evocam obras anteriores de Rosângela Rennó como Realismo fantástico, Puzzles [homem e mulher], O arquivo universal, In Oblivionem, Série vulgo, Série vermelha, Cartologia, Bibliotheca, Corpo da alma e A última foto, nomeando-os em ordem cronológica. Alguns objetos passeiam pela fotografia do século XIX, pela fotografia surrealista e pela jornalística ou pelo voyeurismo das fotografias pornográficas. Sobre outros objetos flutuam alusões aos Bichos de Lygia Clark, a um Bólide de Hélio Oiticica – a inesquecível foto de Mosquito da Mangueira com as mãos no queixo, olhando o Bólide luz 1, apropriação 3, plasticope, 1966 –, aos agrupamentos de fotografias de Annette Messager. Um sentido sutil de ridículo impregna os objetos perfeitos que Rosângela Rennó constrói com elementos populares de sua geração: os abajures feitos com os carrosséis de diapositivos dos projetores Kodak, coroados por cúpulas como as que se usavam nas construções populares dos anos 1980, ou os simulacros de televisores montados com visores de meio quadro, como os que os fotógrafos de rua vendiam na mesma época. Objetos simples que evocam o consume de imagens da classe media baixa no saudoso kitsch daquela época – não inteiramente perdida. 

          III.
          Em Montevidéu, Uruguai, longe do centro da cidade, encontra-se o Museo de la Memoria. Ocupa a Quinta de Santos, um palacete de verão que pertenceu ao ditador Máximo Santos, que governou o país entre 1882 e 1886. Trata-se de residência luxuosa em cujos jardins se encontra um pequeno castelo que servia de casa de bonecas para as filhas do ditador, bem como um zoológico cercado de grades, a leonera (8), de triste fama, pavilhões para criação de pássaros exóticos, uma gruta artificial atravessada por corredores labirínticos e iluminada com luz de gás, fontes, estátuas, cascatas artificiais. 

          Nessa casa, ainda que em ruínas, a memória das ditaduras recentes se materializa em uma coleção de objetos residuais que, por sua modéstia extrema, parecem ser indignos de ocupar qualquer vitrine. Abundam as fotos, muitas vezes grandes ampliações de peque- nas imagens extraídas da imprensa da clandestinidade, um punhado de uniformes carcerários, portas de celas, panelas de alumínio usadas, a impressora de uma gráfica clandestina, algumas bandeiras, alguns poucos panfletos. O que causa mais emoção, entretanto, o que marca mais o breve passo do tempo são os objetos insignificantes que, destinados ao descarte ou ao esquecimento, confirmam a resistência dos uruguaios durante a ditadura. 

          VITRINE 1: esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz, panfletos manuscritos, boletins reproduzidos em mimeógrafo a álcool. A legenda explica “Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos (9), bombas de alquitrán, panfletos y diários de la resistencia”.

          VITRINE 2: cinto masculino de couro sobre um diário onde se lê: “El drama de la madre de Castagnetto” e a notícia da desaparição do militante Héctor Castagnetto, sequestrado pelas forças paramilitares. 

          VITRINE 3: uma pequena caixa de latão que contém um caderninho escrito com letra diminuta. A legenda diz: “Hojas donde se escribió, copiado, el libro ‘Historia del Partido Comunista Vietnamita’ de Ismael Bassin, hecho en el Penal de Libertad”.

          VITRINE 4: sobre saquinhos de papel de seda, estão expostos adornos feitos pelos presos políticos: uma cruz, uma aliança, uma agulha, uma pulseira, um anel de sinete e vários medalhões, todos talhados em osso. Há também pequenas esculturas e baixos-relevos feitos em barras de sabão. 

          A instalação museográfica organiza os objetos como se fossem obras de arte, o que lhes confere um encanto inicial, pois estamos longe da aridez de um museu histórico. O efeito do fora de moda se potencializa na consciência daqueles que (como eu) viveram esse passado sem nunca esperar ver tais objetos elevados à categoria de objetos museificados. “Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos, bombas de alquitrán, panfletos y diários de la resistencia.” 

          Há uma estranha suspensão de valores na exibição das armas rudimentares dos resistentes – não são espadas, nem fuzis, nem metralhadoras – e, ainda que saibamos de sua modesta eficácia, passa por nossa mente a pergunta sobre seu possível uso no século xxi. O coquetel molotov, sobretudo, evoca o espectro de um século xx que nunca cessa. 

          IV.
          Na página Memoria Abierta, inaugurou-se recentemente uma seção nomeada “Vestigios, un ensayo de transmisión a través de los objetos” (10). Os organizadores da página propõem duas questões fundamentais: se os objetos podem estabelecer relações entre passado e presente, e se podem ser utilizados como ferramentas para a transmissão da memória: 

          Essa proposta busca explorar a capacidade que têm os objetos para estabelecer relações entre passado e presente, de maneira que possam ser utilizados como veículos para a transmissão da memória e, ao mesmo tempo, promovam o debate e a reflexão. 

          Com esse propósito, revelam e colocam na página fotografias de coisas materiais que familiares e amigos de vítimas da última ditadura militar conservavam daqueles anos. Cada objeto é acompanhado por um relato que o identifica e contextualiza. 

          Duas vezes vestígio, porque restos e porque fotografias, o que a página exibe são fotos de objetos deixados pelos combatentes mortos e estimados por seus parentes. Essas imagens – fotos de família, cadernos e livros escolares, discos, objetos feitos na prisão, memorabilia peronista – encerram uma memória pessoal e afetiva que muitas vezes está ausente dos relatos históricos. 

          V. 
          Em uma foto, vemos um rapaz que levanta no ar um bebê de menos de um ano. O rapaz sorri, a criança olha assustada. Abrem-se outras: em uma, o jovem abraça o menino contra seu peito; na terceira, a família completa: mãe e pai sorriem com o bebê em seus braços. 

          Essas fotos foram tiradas em uma quinta em San Miguel onde estávamos clandestinos meu marido, meu filho e eu. Meus sogros também tinham vindo de Mendoza e estavam vivendo conosco. Alguns dias antes, havia desaparecido meu cunhado. Vivíamos em uma casa muito simplesinha, em frente havia um arvoredo e atrás outra casa onde viviam meus sogros. Era uma região de quintas, de modo que havia vizinhos, e por isso queríamos dar a impressão de sermos uma família muito normal. Assim, combinamos fazer um dia de visita familiar no qual veio minha irmã, os filhos etc. Todos chegaram escondidos para que não soubessem onde estava a casa. Minha irmã trouxe uma câmera e aproveitamos para tirar muitas fotos. Isso era janeiro de 1976 e meu marido desapareceu seis meses depois. Essa é a única foto que temos de nós dois com nosso filho. (11)

          A foto de cinco porta-retratos empilhados comprados na Cidade do México: aquele que está por cima mostra o retrato de um menininho, o seguinte deixa adivinhar a imagem de uma menina, depois as imagens estão cobertas e só se veem marcos dourados. Não se sabe quem são essas crianças, onde estão; adivinhamos por suas roupas que já não devem estar vivas. 

          LOTE 16

          APAGAMENTO POR EMPILHAMENTO            
          D.O.C. Tianguis de Santa Cruz, Cidade do México, México               
          C.O. 37,00
          L.I. 130,00
          DIMENSÕES 30,5 × 25 × 8 cm                  
          DESCRIÇÃO Cinco fotografias p&b (papel de gelatina e prata) em cinco porta-retratos de materiais diferentes, metal e / ou madeira folheada a ouro, sobrepostos. 


          MODELO II: DA MENOS-VALIA E DA MAIS-VALIA 

          I. 
          “Menos-valia”: o dicionário Houaiss nos informa que a palavra “menos- -valia” é um substantivo feminino utilizado na língua portuguesa pelo menos desde 1971. Pertence ao vocabulário da economia e significa “diferença entre o valor contábil líquido de um bem e seu valor venal, quando este é menor que aquele” (12) Sua etimologia indica tradução do francês “moins-value, dicionarizado em 1765: “diminuição do valor de alguma coisa, perda de valor, diferença entre o produto real e o produto teórico (de uma taxa, de um imposto)” (13) formado por oposição a “plus-value”, “mais-valia”. No site <www.thinkfn.com>, somos informados de que um investidor, muitas vezes, por questões fiscais, terá que vender um investimento no qual tem perdas apenas para realizá-las e poder, assim, abatê-las com outras mais-valias já realizadas; ou seja: “As menos-valias realizadas abatem as mais-valias realizadas no mesmo período fiscal, para efeitos fiscais” (14). 

          Em espanhol, encontramos uma palavra grafada “minusvalía”, cujo significado é: “1. Diminuição do valor de um objeto ou de um direito contabilizado em dois momentos distintos. 2. Diminuição da capacidade física ou psíquica de uma pessoa” (15). A segunda acepção é usada comumente em contextos psicológicos, na teoria do direito e até no jargão policial com o sentido de incapacidade, capacidade reduzida e até complexo de inferioridade, significado que incorpora entre seus sintomas os sentimentos de fracasso, insuficiência e impotência. 

          Menos-valia [leilão] de Rosângela Rennó desliza entre esses sentidos, uma ferida que não acaba de cicatrizar entre as operações monetárias e o lugar íntimo dos sentimentos fracassados e os afetos perdidos. A estratégia perversa da artista que transmuta o valor decadente do objeto descartado no valor potente de um trabalho de arte legitimado pela instituição e pelo mercado deixa vislumbrar num relance o quanto pulsa, nesses objetos, uma força que renega da perda e do fracasso. 

          Sobre as ruínas da modernidade, sobre os escombros do futuro utópico, as tecnologias obsoletas e as imagens perdidas parecem ser infinitamente mais eloquentes que o fluxo interminável e vazio que nos cobre de imagens perfeitas. A impotência de resgatar uma só imagem nessa torrente interminável de desejos e a nostalgia de um tempo anterior à destruição provocam melancolia, uma melancolia, porém, que se aparta cada vez mais do objeto perdido. 

          II. 
          Em 2008, Damien Hirst decidiu deixar de lado os intermediários (Jay Jopling, da White Cube, em Londres; e Larry Gagosian, em Nova York) e fazer um leilão de suas obras na casa Sotheby’s, em Londres. O artista centrou sua atividade em fazer o marketing do evento e convidou colecionadores importantes, como a designer de moda Miuccia Prada, o empresário ucraniano Victor Pinchuk e o dono da casa de leilões Christie’s, François Pinault, a seu estúdio em Gloucestershire para uma visita privada, prévia à exibição das obras. A Sotheby’s, por sua vez, cedeu todo o espaço de sua galeria em Londres e aumentou o contin- gente de vigilância durante os dias de visita pública. 

          A exposição, chamada Beautiful Inside My Head Forever, consta de variações sobre temas familiares do artista. Havia abundância de tan- ques com animais em formol, havia também armários de vidro cheios de qualquer coisa, de diamantes a guimbas de cigarro, pinturas e trabalhos em papel que exibem suas peculiaridades – caveiras, pontos, caleidoscópios spin e mariposas –, disponíveis em todos os tamanhos. O leilão coincidiu com o débâcle do mercado financeiro, o que pareceu sinalizar que a arte era um refúgio seguro para os investimentos das grandes fortunas. 

          É sabido por todos os colecionadores que Hirst “não pinta suas triunfalmente vazias pinturas de pontos – as melhores pinturas de pontos de Damien Hirst são aquelas pintadas por Rachel Howard”, afirma Germaine Greer, crítica de arte do The Guardian, e acrescenta: “Damien Hirst é uma marca, porque a arte do século XXI é marketing” (16).

          No mesmo texto, Greer contesta a declaração de Robert Hugues, de que não existe nenhuma ressonância da narrativa bíblica no Bezerro de ouro, trabalho de destaque na exibição. Para ela o bezerro morto seria, em realidade, um descendente legítimo do ídolo bíblico, um ídolo que venera a potência da riqueza material, porque, como ela acredita, nem o bezerro nem nenhuma das outras obras são trabalhos: “Querido Bob, o leilão da Sotheby’s é o trabalho” (17).

          III.
          Convidada a participar da 29a. Bienal de São Paulo – que, sob o título de Há sempre um copo de água para um homem navegar, pretendia analisar as relações entre arte e política na arte contemporânea – com a obra Matéria de poesia, Rosângela Rennó propôs ao curador Moacir dos Anjos realizar também um leilão de objetos de sua autoria, que aconteceria nos últimos dias da mostra, em dezembro de 2010. 

          O trabalho Menos-valia [leilão] já havia sido realizado – como um ensaio piloto com o título de Menos-valia [Subasta] – no Museo Universitario de Arte Contemporáneo (Muac), da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), dentro da programação do evento Jardín de Academus, organizado e curado pelo artista mexicano José Miguel González Casanova. 

          Esse leilão, realizado em maio de 2010, investigava as possibilidades de atribuir um valor de exposição legitimado a objetos comprados nos tianguis da Cidade do México. Os lotes incluíram objetos variados, não apenas relacionados ao campo da imagem técnica. O que todos tinham em comum era estar à venda nos mais humildes mercados de usados e ter certa aparência carinhosamente kitsch. Sobre o muro do museu e sobre a mesa de exposição, coberta de veludo vermelho, havia brinquedos infantis, bibelôs, frascos de vidro, mas também porta-retratos, visores estereoscópicos, fotografias emolduradas. 

          No pavilhão da Bienal, o leilão foi realizado dia 9 de dezembro de 2010, depois da hora de fechamento da exposição, no mezanino, em um espaço livre contíguo à cafeteria, da qual se aproveitaram os bancos e onde se acomodaram alguns assentos. O leiloeiro Aloisio Cravo subiu em um pequeno pódio com um parlatório de acrílico e dali dirigiu o leilão, cujos lotes eram mostrados em uma tela de projeção portátil montada. Entre os possíveis compradores, incluíam-se colecionadores como José Olympio Pereira, Dudu Linhares, Oswaldo Corrêa da Costa e Bruno Musatti e curadores como Moacir dos Anjos, Marcelo Araújo e Adriano Pedrosa. 

          Em um catálogo, disponível em pdf, cada lote era identificado por seu número de ordem. Também estavam discriminados os lugares onde os objetos foram comprados (D.O.C.), o custo do objeto (C.O.), o lance inicial (L.I.), o preço final (P.F.), os materiais utilizados e a dimensão do objeto final. 

          LOTE 24
          CARTES DE VISITE COM AMPLIADORES 

          D.O.C. Tianguis de Santa Martha, Cidade do México, México c.o. 30,00
          L.I. 150,00
          DIMENSÕES 20 × 30 × 3,5 cm                    
          DESCRIÇÃO Duas molduras contendo três retratos em p&b (papel de gelatina e prata) escolhidos pela artista, a partir de um conjunto de fotos provenientes do México. 

          O leiloeiro destacou várias vezes durante sua atuação que nunca havia ouvido falar, no Brasil, de um leilão inteiramente formado por lotes de um mesmo artista e muito menos por lotes pertencentes a uma mesma instalação que estivera em exibição dentro do evento de arte mais importante do país, a Bienal de São Paulo. 

          Todos os lotes foram disputados e vendidos em meio a uma excitação geral (nada da muda tensão dos leilões de arte da Christie’s ou da Sotheby’s). O leiloeiro Aloisio Cravo anunciou que as obras poderiam ser retiradas a partir do dia 13 de dezembro em seu escritório e que, aos preços alcançados, deveria ser acrescida sua comissão de 5%, como de praxe. A Bienal terminaria dois dias depois, mas a instalação foi desmontada no dia seguinte ao leilão. Então o trabalho foi finalizado. Sua função na 29a. Bienal de São Paulo estava concluída e o espaço antes ocupado pelos objetos foi deliberadamente deixado vazio. 

          Desde o início do trabalho, com a compra feita por Rosângela Rennó e seus amigos de objetos fotográficos nos mercados de rua de vários países, até o instante em que cada colecionador saiu da casa de leilões com sua obra cuidadosamente embalada, com sua placa de identificação e seu certificado de autenticidade, se desenvolveu um processo performático do qual muitos dos implicados não tiveram consciência. 

          Porque, como disse Greer a respeito do leilão de Hirst, o leilão era o trabalho. E o trabalho se parece bastante com a vida: a artista criou, os amigos colaboraram, os assistentes assistiram, os curadores curaram, a Fundação Bienal autorizou, o leiloeiro leiloou, os colecionadores compraram e os críticos, como sempre, não criticaram. Como em um déjà vu assustador no qual, a cada instante, o percebido e o recordado se superpõem e se separam simultaneamente, nada escapou ao previsto. As palavras de Aloisio Cravo, “nunca se havia ouvido falar no Brasil de um leilão inteiramente formado por lotes de um mesmo artista” foram verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, porque do que ninguém ouvira falar até então era a presença de colecionadores, curadores e artistas transformados inadvertidamente em atores implicados numa ação; mais ainda: atores que representaram seu papel à perfeição, apesar de nenhum script lhes ter sido previamente atribuído. 

          Menos-valia [leilão] põe também a descoberto muito do que a Bienal de São Paulo oculta ou sonega. No texto de apresentação do catálogo, os curadores afirmam que se esquivaram do modelo frequente nas mostras de arte contemporânea: “do modelo vinculado somente às demandas apressadas do mercado e do espetáculo, marcado pela ansiedade da busca do que é supostamente inédito” (18). Rosângela Rennó, entretanto, leva a avidez do mercado em sua expressão mais radical aos puríssimos vãos livres de Oscar Niemeyer. 

          Todos sabemos que o mercado de arte contemporânea domina o mercado de arte em geral e que, nos últimos anos, as vendas mais espetaculares têm se dado em leilões, ou seja, no lugar tradicional do mercado secundário, que é onde são testados os critérios de gosto, de valor artístico e de temporalidade, e onde se confirma ou se questiona o valor monetário do trabalho do artista. (19)

          Qual seria o sentido de apresentar Menos-valia [leilão] na Bienal de São Paulo? Um leilão que é, ao mesmo tempo, ação artística – resisto à palavra “performance”, que conserva o sentido primeiro de representação – e um leilão verdadeiro? 

          No texto de apresentação a artista declara que: 

          Esses objetos passam por sucessivas agregações de valor material e simbólico até seu destino final, a ser definido no dia 9 de dezembro de 2010, quando cada um deles será leiloado dentro do próprio pavilhão da Bienal. Ao adquirir um objeto, o compra- dor receberá o certificado de propriedade de uma parte do projeto Menos-valia [leilão] e poderá incluí-lo em sua coleção de arte. 

          No campo das ideias, Menos-valia [leilão] pode ser compreendido, também, como uma das práticas contemporâneas mais fortemente vinculadas às atuais teorias da Ruinologia, como a do “recuperacionismo ativo de transformação”, entre outras con- solidadas recentemente. (20)

          No primeiro parágrafo, a autora assinala que o comprador de um objeto comprará apenas uma parte do projeto. Sustenta abertamente que o projeto continuará sendo seu e que, por isso, não estará incluído como totalidade em qualquer coleção de arte. A artista esboça um rictus irônico ao aludir a uma nova disciplina, a “ruinologia”, e um de seus ramos, o “recuperacionismo ativo de transformação”. 

          Artistas contemporâneos, como o cubano Carlos Garaicoa, são embargados por esse sentimento melancólico que as ruínas despertam; no seu caso, os predios inacabados e abandonados de Havana, depois do declínio do socialismo europeu. As ruínas do projeto utópico – não ruínas de um passado luminoso, mas ruínas de um futuro que não aconteceu – são evocadas por Garaicoa como “ruínas do futuro”.

          O paradoxo de Garaicoa, que parece aludir à boutade do poeta cubano Nicolás Guillén ao ver pela primeira vez Brasília: “contemplo, atônito, as ruínas do futuro”, desloca para o futuro a noção de ruína, sempre considerada um remanescente do passado. 

          Na Renascença os restos arquitetônicos das antigas civilizações adquiriram o estatuto de testemunhos, ainda vivos, de tempos mais gloriosos. Objetos e fragmentos de objetos do passado, sem significado nem função, foram investidos com valores estéticos, políticos ou históricos do presente. As ruínas perturbam porque anunciam a iminente perda de sentido que ameaça toda obra humana; mas essa falha na significância transforma-se numa vertiginosa proliferação discursiva. As ruínas com que Rosângela Rennó trabalha são restos de um passado mais ou menos próximo, resíduos da vida moderna que ainda parece existir e proliferar, cada vez mais degradada, nas periferias pobres de nossas cidades opulentas. O que move a artista é um sentimento melancólico que não se regozija no perdido, mas que aceita a perda e a torna produtiva. 

          Os objetos de Rosângela Rennó indicam pontos de indagação sobre sua própria origem; são lugar de estratégias de reflexão que podem nos dizer mais sobre quem as olha do que sobre o que é olhado. 

          Ao denominar sarcasticamente a operação de “menos-valia”, Rosângela Rennó parece escamotear a potência inelutável do valor agregado: 

          LOTE 20
          BICHO POLAROIDE 

          D.O.C. Tianguis de Santa Martha, Cidade do México, México                
          C.O. 85,00
          L.I. 170,00
          DIMENSÕES 18 × 30 × 11 cm                                      
          DESCRIÇÃO Duas câmeras fotográficas instantâneas Polaroid sx 70 Land, idênticas, coladas. Uma foi adquirida no Rio de Janeiro e a outra no México. 

          Nesse lote, as duas câmeras Polaroid custaram R$85,00; o lance inicial que, suponhamos, agregaria o valor da mão de obra, o de um material adesivo e o da plaqueta de acrílico com sua correntinha fez subir o preço a R$ 170,00, valor do lance inicial. O preço alcançado no leilão superou quase quatrocentas vezes o valor desse lance. A exibição na Bienal, o leilão inaudito, o prestígio de Rosângela Rennó no sistema da arte internacional, a alusão oportuna aos Bichos de Lygia Clark e até certa semelhança visual com alguns deles, não necessariamente nessa ordem, aumentaram o valor agregado ao objeto. Mas pode-se falar ainda de mais-valia no campo complexo do mercado de objetos suntuários (únicos, raros, exclusivos), no qual se incluem os objetos de arte? Esse campo regula-se através de uma relação específica de oferta e procura, pois o valor monetário que tais objetos alcançam depende quase exclusivamente do valor simbólico que eles têm, asso- ciado a sua exclusividade, ao desejo de possuí-los e ao prestígio decorrente da capacidade de comprá-los e exibi-los. 

          Rosângela Rennó desvela e exibe os mecanismos do mercado em uma exposição na qual prevalecem obras que, de acordo com a curadoria, não obedeceriam “às demandas apressadas do mercado e do espetáculo” (21). Presentes na mesma Bienal, trabalhos das décadas de 1960 e 1970, como Tucumán arde, La familia obrera, as ações do Grupo Cada ou as situações de Artur Barrio, obras efêmeras de que restam somente registros de época, respondem a essa intenção. 

          A forma como Menos-valia [leilão] se exibe é própria do mercado: um display de objetos que seriam (e foram) arrematados pelo melhor lance. Essa estratégia de exibição mostra ao público (porém, a qual público?) como os resíduos da indústria cultural podem ser elevados à categoria de obras de arte. A artista declara, através de sua instalação e da ação consequente, que, ao perder seu valor funcional, as coisas comuns, insignificantes, podem alcançar não só um caráter potente e duradouro, como também, por meio da legitimação outorgada pela instituição da arte, um valor monetário elevado. 

          CODA 

          O significado das insignificâncias está todo concentrado na carga evocativa que es- ses objetos ainda conservam, em suas vitrines, dentro de suas caixas, fora do leilão. O lote 72, Minha vida através de retratos, comprado no Troca-troca da praça xv, no Rio de Janeiro, encerra, numa simples moldura preta “um álbum sem capa, completíssimo, de uma mulher singular” (22). O que se vê através do vidro é exatamente isto, apenas isto: um álbum sem capa, com a primeira página bastante deteriorada. As folhas estão amarradas por uma fita brilhante de material sintético. Na única página visível há três fotografias, numa delas vê-se uma menina pequena em pé sobre uma cadeira, na outra duas meninas com grandes laços no cabelo, uma sentada, outra de pé sobre um mesmo banquinho, segura pela perna um boneco. A fotografia de uma jovem – a mulher singular? – na praia, com um pé em cima da bola, se superpõe às outras duas no centro da página. Se as fotos são da mesma mulher, entre as primeiras e a última devem ter se passado mais de dez anos. Sobre o papel cinzento do velho álbum, há várias escritas: “Minha vida através de retratos” campeia no cabeçalho da página numa letra manuscrita ornamentada. Sob a foto da menina está escrito, com outra caligrafia, “Españ (R”, o resto da legenda está oculto pela foto da jovem. Sob a foto das duas meninas, a mesma mão traçou “Brasil (Rio de Janeiro) 3 años”; mas a mulher singular corrigiu a legenda e com tinta de outra cor agregou “/4” ao lado do número 3. A foto da jovem esguia numa praia foi superexposta, e seu corpo da cintura para cima está borrado pela luz do sol. 

          Eis os dados para um relato que começa na Espanha (Restabal, Riaño, Rioja, Rioscuro, Rodalquilar,?) e continua no Rio de Janeiro, eis os dados para começar a imaginar as mãos que montaram o álbum que começou em espanhol e continuou em português: mãos femininas sem dúvida, mãos afetuosas. Em Menos-valia [leilão] o álbum não trata mais da vida de uma mulher singular, mas da vida singular de muitas mulheres imigrantes. Os restos de uma vida que bem podiam findar no lixo ou no Troca-troca da praça XV são reconduzidos agora a uma coleção, depois de terem passado pelos salões da 29a. Bienal de São Paulo. 

          O trapeiro de Baudelaire se superpõe de novo à imagem do artista; Rosângela Rennó reúne imagens e objetos que perderam todo valor de uso e quase todo valor de troca, recombina-os, singulariza-os e os entrega para outro setor do mercado. A estratégia que opera na construção de Menos-valia [leilão] – recolecção, montagem, exibição, leilão e dispersão – expõe os mecanismos de produção e de alienação dos bens culturais. 

          Nesse processo interminável – entre a melancolia e o cinismo – Rosângela Rennó nos propõe preciosos enigmas e obscenos modelos para armar. 


          1. Walter Benjamin, Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 25. 
          2. Id., ibid, p. 25.
          3. Cf. Hal Foster, “This Funeral Is for the Wrong Corpse”, in Design & Crime. Londres: Verso, 2002, p. 139. 
          4. Charles Baudelaire apud W. Benjamin, Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79.
          5. Firmin Maillard, La Cité des intellectuels, Paris, 1905, p. 362. Apud W. Benjamin, Passagens. Belo Horizonte: ufmg, 2006, p. 227. 
          6. W. Benjamin, Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79. 
          7. H. Foster, op. cit., p. 67. 
          8. Um poço onde o ditador criava leões e, dizem, costumava jogar seus opositores. 
          9. “Miguelito” era a denominação popular, rio-platense, para pregos grandes dobrados ao meio e soldados em cruz que eram jogados nas ruas com o objetivo de furar os pneus das viaturas da polícia. 
          10. <www.memoriaabierta.org.ar/vestigios>, acessado em jun. 2012. 
          11. <www.memoriaabierta.org.ar/vestigios/objeto.php?id=81>, acessado em jun. 2012. 
          12. Dicionário Eletrônico Houaiss.
          13. Id., ibid.
          14. <www.thinkfn.com/wikibolsa/Menos-valia>. 
          15. Pequeño Larousse Ilustrado
          16. Germaine Greer, “Note to Robert Hughes: Bob, dear, Damien Hirst is just one of many artists you don’t get”. The Guardian, 22 / 9 / 2008. 
          17. Id., ibid. 
          18. 29a. Bienal de São Paulo (catálogo). São Paulo: Fundação Bienal, 2010, p. 21.
          19. Terry Smith, What is Contemporary Art? Chicago: The University of Chicago Press, 2009, p. 119. 
          20. Texto de apresentação de Menos-valia [leilão] de Rosângela Rennó. Texto de parede na 29a. Bienal de São Paulo. 
          21. 29a. Bienal de São Paulo (catálogo), op. cit., p. 21. 
          22. Catálogo on-line de Menos-valia [leilão]


          MELENDI, Maria Angélica. Modelos para armar. In RENNÓ, ROSÂNGELA. Menos-valia [leilão]: Rosângela Rennó. São paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 228-265.
          Only what expires or comes late becomes artistic, becomes politicized.

          Ricardo Piglia 


          MODEL I: ON THE INSIGNIFICANT 

          Why, at certain times, is it so necessary to say: “I loved this?” I loved some blues, a picture on the street, a poor dry river in the north. Bearing witness, fighting anything that would sweep us away. So, these diminutive things hover in the air of the soul, a little sparrow from Lesbia, some blues that occupy, in remembrance, the small site of perfumes, pictures and paperweights.

          Julio Cortázar 

          I. 
          Immense melancholy seems to emanate from old things. Not antiques, but old things: macramé curtains from your father’s house, a Bakelite radio, a kerosene heater, mother-of-pearl buttons, shift dresses, old family photographs, super-8 camcorders, obsolete cameras, cassette decks. Somehow, objects used throughout our lives cannot lose the allure of when they were new, an allure that, however, has turned to nostalgia, bitterness, or desire. 

          For some years now – since the late 1980’s, perhaps – flea markets have gone upscale and multiplied; no longer visited by the poor, they now attract young students, neo-dandies or jaded young ladies. The word modernariato, a (Brazilian) neologism coined from the Italian antiquariato, began to proliferate, along with the term vintage, coined from winemaking, both used to classify fetish-objects from the last century. 

          The use of these objects, standing halfway between corpse and consecrated body relic, began to appear in Surrealist collages and assemblages. Because surrealism 

          was the first to uncover the revolutionary energies apparent in the “antiquated”, in the first iron constructions, the first factory buildings, the earliest photos, the things now beginning to die out, the drawing-room grand pianos, the clothes of five years ago, the smart watering holes when the fashionable world begins to desert them. These authors understood better than anyone the relationship between these objects and the revolution (1). 

          The aesthetics of the flea market (and its ethics) consists of replacing the historic view of the past with a political view, as desired by Walter Benjamin, for whom the Surrealists discovered that outmoded objects and “enslaved and enslaving” things contained latent repressed energies that could explode in “revolutionary nihilism” (2).

          At present, we run the risk that the outmoded which is back in fashion – as in modernariato and vintage – will lose these repressed energies when it is made current again by the undifferentiated demands of memory. To the ruins of the bourgeoisie, whose ashes are still warm, we can add the smoking ruins of the urban middle class, and – why not? – those of the future of the proletariat of the first half of the twentieth century (3).

          Modernariato, vintage, memorabilia, souvenirs: design objects, jewelry, clothing, school supplies, product labels, films, photographs, books, post- cards from World War II, from the first Peronist government, from the Cuban Revolution, Jovem Guarda, East Germany, the Soviet Union, the Cold War, the conquest of space... Contemporary culture seems to be in constant confrontation with the signs it created, developed, and destroyed in order to perpetuate itself. Repressed, perhaps even forgotten, but still alive, these signs retain, nevertheless, the power to rekindle the ashes and inflame the anxieties of the utopian dream that witnessed their birth. 

          II. 
          In the 29th São Paulo Biennial, in 2010, on the first floor, a small space enclosed by two walls contained Rosângela Rennó’s installation Menos-valia [leilão] (Minus-Value [Auction]), consisting of 73 objects, displayed on the walls and on a multi-level table in the center of the room. Cordons separated objects from visitors. Each object had a hole, and through that hole passed a thin chain holding a plaque showing the name of the artist, the name of the installation, a number assigned to the object and the place where it was acquired. A wall label stated that the objects would be auctioned near the end of the 29th Biennial by official auctioneer Aloisio Cravo, a specialist in Brazilian painting.

          The artist assembled 73 objects using, as raw material, discarded photographic and filmmaking equipment, bought at the humblest flea markets of two continents. In her wanderings through the fairs of Montevideo, Rio de Janeiro, São Paulo and Lisbon, the tianguis of Mexico, El Rastro in Madrid or the marchés aux puces of Paris, Rosângela Rennó collected cameras, slide carrousels, slide viewers and projectors, stereoscopy devices, magic lanterns, praxinoscopes, microscopes, telescopes, binoculars, lunettes, magnifying glasses, mirrors, jigsaw puzzles, silhouettes, photo albums, portraits, picture frames, and also old photographs. 

          Underlying the contemporary figure of the wandering artist, drifting be- tween centers and peripheries, there is the modernist image of the rag-picker – the trash collector – also adrift between the center and periphery of the city, collecting the garbage of whoever has garbage to discard of.


          To Charles Baudelaire, the paradigm of the artist as hero of modernity unfolds into a proud cohort of the dispossessed: the fencer, the robber, the apache, the rag-picker 

          has to collect, in the capital, the garbage of every day that passes. All that the big city threw away, all that it lost, all that it despised, all that it destroyed is collected and recorded by him. He compiles the annals of debauchery, the capharnaum of the dregs: he separates things, makes an intelligent selection; proceeds, like a miser with his treasure, and lingers in the wreckage that, between the jaws of the goddess Industry, will take the form of useful and agreeable objects (4). 

          According to Benjamin, Baudelaire’s terse manner of walking, described by Félix Nadar – “Baudelaire walked his neighborhood and the city in a fitful manner, simultaneously nervous and languid, like a cat, choosing each cobblestone as if to avoid crushing an egg” (5) – would be “the step of a poet who wanders the city in search of rhymes” (6); the walk of a rag-picker, stopping at every moment to select and store discarded objects. 

          The rag-picker is also a collector: he collects “the annals of debauchery, the capharnaum of the dregs”, the remains of past disasters that float before us, utterly lost. Whatever the rag-picker rescues from this limbo, which is not even a ruin, will be transformed because, unlike the collector, he does not amass for himself, but merely collects and forwards. 

          With elegance, delicacy and humor, Rosângela Rennó assembled these remnants and transformed them into fetish objects, relics: ambiguous objects that slide from the sacred to the profane, the sublime to the grotesque, from irony to melancholy. Is it not melancholy, the smile that begins to form when we see that camera that we so desired decades ago, cloistered in a glass case that pre- serves it and separates it from us, like a tanagra or a small Egyptian glazed pottery hippo? 

          In each object, layers of memories overlap; the initial perception is possibly that of the scarce temporality of the thing itself; but, from this information, memories of use begin to grow, of the place of purchase, of the images that nearly always come attached, of the everyday situations in which they were included and, finally – last but not least – of the mnemonic pre- existence of works by the artist herself and by other artists. 

          The objects of Minus-Value [Auction] activate the memory and, unconsciously, modify it, because the hypothetical first memory is added to the memory of the object evoked. In this process of sub-textuality of “previous mnemonic images” (7) which is not citation, much less pastiche – in the sense of transmission of visual elements – resides the foundation of an artistic tradition. 

          Facing the installation, one can see that several objects evoke earlier works by Rosângela Rennó, such as Fantastic Realism, Puzzles [man and woman], The Universal Archive, In Oblivionem, Vulgo Series, Red Series, Cartologia, Bibliotheca, Body of Soul, and The Last Photo, to name them in chronological order. Some objects wander through nineteenth century photography, Surrealist photography, journalistic photography, or the voyeurism of pornographic photographs. Over other objects hover allusions to the Bichos of Lygia Clark, a Bólide by Hélio Oiticica – the unforgettable photo of Mosquito da Mangueira with his hands on his chin, looking at Bólide luz 1, apropriação 3, plastiscope, 1966 – and Annette Messager’s photographic groupings. A subtle sense of the ridiculous pervades the perfect objects that Rosângela Rennó assembled with everyday elements of her generation: lamps made using Kodak slide projector carrousels, crowned by shades such as those used in popular architecture of the 1980s, or the television simulacra with middle frame visors, like those that street photographers used to sell at the time. Simple objects that evoke the consumption of lower middle-class images in the evocative kitsch of that decade – not yet entirely lost. 

          III. 
          In Montevideo, Uruguay, far from the city center, lies the Museo de la Memoria. It occupies the Quinta de Santos, a summer palace that belonged to Dictator Máximo Santos, who ruled the country between 1882 and 1886. It is a luxurious residence in whose garden there is a small castle that served as a doll house for the dictator’s daughters, a zoo encircled by bars – the infamous leonera (8) –, pavilions for breeding exotic birds, an artificial cave crisscrossed by labyrinthine corridors and illuminated with gaslight, fountains, more fountains, statues, artificial waterfalls. 

          Though in ruins, this house preserves the memory of recent dictatorships with a collection of residual objects that, in their extreme modesty, seem un- worthy of any display case. Photos abound, often outsized enlargements of small images taken from the underground press; there are a handful of prison uniforms, cell doors, used aluminum pans, a printer used by an underground printing press, some flags and pamphlets. What are most moving, however, what most characterizes that short span of time, are the most insignificant objects, those that, intended for disposal or oblivion, affirm the resistance of Uruguayans during the dictatorship. 

          DISPLAY CASE 1: ball bearings, lead pellets, a glass bottle with a wick of cloth, nails folded in half and soldered crosswise, handwritten pamphlets, mimeographed newsletters. The caption explains: “Pellets and ammunition used to make horses slip and slide, miguelitos (9), Molotov cocktails, pamphlets and resistance journals.” 

          DISPLAY CASE 2: Men’s leather belt lying over a diary that reads: “The drama of Castagneto’s mother” and news of the disappearance of activist Hector Castagnetto, kidnapped by paramilitary forces.

          DISPLAY CASE 3: A small tin box containing a notebook written in tiny script. The caption reads: “On these leaves the book ‘History of the Vietnamese Communist Party’ was hand copied by Ismael Bassin, Liberty Prison.” 

          DISPLAY CASE 4: On little silk paper bags, ornaments made by political prisoners are displayed: a cross, a wedding ring, a needle, a bracelet, a signet ring, and several medallions, all carved in bone. There are also small sculptures and bas-reliefs carved on soap bars. 

          The museographic installation organizes the objects as if they were artworks, giving them an initial interest, far from the coldness of a historical museum. The impression of being outmoded is heightened in the consciousness of those (like me) who experienced this period without ever expecting to see these things elevated to the category of museological object. “Pellets and ammunition to make horses slip and slide, miguelitos, Molotov cocktails, pamphlets and resistance journals.” 

          There is a strange suspension of values in exhibiting the resistance fighters’ crude weapons – they are not swords, rifles, or machine guns – and, even though we may be aware of the modesty of their effectiveness, questions arise about their possible use in the 21st century. The Molotov cocktail, above all, evokes the specter of a 20th century that refuses to quit. 

          IV.
          In the Memoria Abierta page, a segment called “Vestigios, un ensayo de transmisión a través de los objetos” (10). [Vestiges, an Essay on Transmission through Object] was recently opened. Its organizers propose two fundamental questions: can objects establish relationships between past and present, and can they be used as tools for the transmission of memory: 

          This proposal aims to investigate the ability of objects to establish relationships between past and present, so that they can be used as vehicles for the transmission of memory while, at the same time, stimulating debate and reflection. 

          For this purpose, they reveal and include on the page photographs of material things that families and friends of victims of the last military dictatorship retained from those years. Each object is accompanied by a report that identifies and contextualizes it. 

          Two times vestiges, because they are residue, and because they are photographs; what the page shows are pictures of objects, left behind by the dead combatants, that are cherished by their relatives. These images – family photos, notepads and school books, records, objects made in prison, Peronist memorabilia – hold a personal and affective memory that is often lacking from historical accounts. 

          V.
          In one picture, we see a boy raising a baby under the age of one in the air. The boy is smiling, the child looks frightened. Other pictures unfold: the same young man holding the boy against his chest, and the entire family: mother and father smiling, the baby in their arms. 

          These pictures were taken at a ranch in San Miguel where my husband, my son and I were underground. My in-laws had also come from Mendoza and were staying with us. A few days before, my brother-in-law had disappeared. We lived in a very simple house; in front there was a grove, and behind another house, where my in-laws lived. It was an area of farms; there were neighbors, and we wanted to give the impression of being a totally normal family. So, we decided to have a family day in which my sister came, her children, etc. All came hidden, so they wouldn’t know where the house was. My sister brought a camera, and we took the opportunity to take lots of pictures. That was in January of 1976; my husband disappeared six months later. This is the only picture I have of us with our son. (11)

          The photograph of five stacked picture frames, bought in Mexico City: the one on top shows the portrait of a little boy; the next one allows us to guess the image of a girl; after that the images are covered, and we see only a golden leaf. No one knows who these children are, where they are; we guess, from their clothes, that they probably are no longer alive. 

          LOT 16
          ERASURE BY STACKING 

          C.D.O. Santa Cruz Street market, Mexico City, Mexico       O.C. 37,00
          S.B. 130,00
          DIMENSIONS 30,5 × 25 × 8 cm          DESCRIPTION Five b&w photographs (gelatin silver paper) in five picture frames of different materials, metal and / or gilded wood, overlaid. 

          MODEL II: OF MINUS-VALUE AND SURPLUS-VALUE 

          I. 
          “Minus-value”: the Houaiss dictionary tells us that the term “minus- value” is a feminine noun used in the Portuguese language since at least 1971. It belongs to the vocabulary of economics and means “the difference between the net book value of an asset and its market value when the latter is less than the former” (12).  Its etymology indicates translation of the French “moins-value”, which entered the dictionary in 1765: “decrease in the value of an object, loss of value, difference between real and theoretical product (for a fee, a tax)” (13) formed in opposition to the French “plus-value or “surplus-value.” In www. thinkfn.com, we are told that an investor, often for tax reasons, will sell a losing investment in order to realize his loss so that he can offset other realized gains; in other words: “The realized minus-values offset the realized surplus- values in the same fiscal period for tax purposes” (14). 

          In Spanish, we find the written word “minusvalía” meaning: “1. Decline in value of an object, or accounting asset, at two different times. 2. Decrease in a person’s physical or mental capacity” (15). The second meaning is commonly used in psychological contexts, in legal theory, even in police jargon, to convey disability, diminished capacity, and even inferiority complex, a meaning that includes, among its symptoms, the feelings of failure, inadequacy, and impotence. 

          Rosângela Rennó’s Minus-Value [Auction] glides between these meanings, a wound that will not heal between monetary operations and the intimate place of failed sentiments and lost affections. The artist’s perverse strategy of transmuting the decadent value of the discarded object into the potent value of the artwork, legitimized by institution and market, allows us to instantly glimpse, in these objects, the strong pulse of a force driven to deny loss and failure. 

          On the ruins of modernity, on the rubble of the utopian future, obsolete technologies and lost images appear to be infinitely more eloquent than the interminable and empty stream that inundates us with perfect images. The inability to rescue one single image from this endless torrent of desires, and the nostalgia for a time before destruction, provoke melancholia, but a melancholia that detaches itself increasingly from the lost object. 

          II. 
          In 2008, Damien Hirst decided to bypass his agents (Jay Joplin, of White Cube in London, and Larry Gagosian, in New York) and hold an auction of his works at Sotheby’s in London. The artist focused his activity on marketing the event, and invited important collectors, like the fashion designer Miuccia Prada, the Ukrainian businessman Victor Pinchuk, and the owner of auction house Christie’s, François Pinault, to his studio in Gloucestershire for private visits prior to the works’ display. Sotheby’s, in turn, made available their entire London gallery space and reinforced surveillance during the public viewing. 

          The exhibition, called Beautiful Inside My Head Forever, consists of variations on the artist’s familiar themes. An abundance of animals in formaldehyde tanks, glass cabinets filled with anything from diamonds to cigarette butts, paintings and works on paper that exhibit his particularities – skulls, spots, spin kaleidoscopes and moths –, available in all sizes. The auction coincided with a financial market crisis, appearing to signal that art was a safe haven for large fortunes. 

          It is well-known, by all collectors, that Hirst “does not paint his triumphantly empty spot paintings – the best spot paintings by Damien Hirst are those painted by Rachel Howard”, says Germaine Greer, an art critic for The Guardian, adding: “Damien Hirst is a brand, because the art form of the 21st century is marketing” (16). 

          In the same text, Greer contests Robert Hughes’s claim that there is no biblical resonance in the Golden Calf, a key work in the exhibition. For her, the dead calf would be, in reality, a legitimate descendant of the biblical idol, an idol that worships the power of material wealth; because, as she believes, neither the calf, nor any of the other works, are the artwork: “Bob dear, the Sotheby’s auction was the work” (17). 

          III. 
          Invited to show the work Matter of Poetry at the 29th São Paulo Biennial – which, under the title There Is Always a Cup of Sea to Sail in, intended to analyze the relationship between art and politics in contemporary art – Rosângela Rennó also proposed to curator Moacir dos Anjos that an auction of her works be held during the final days of the exhibit, in December, 2010. 

          The work Minus-Value [Auction] had already been presented – as a test run, with the Spanish title of Menos- valia [Subasta] – at the Museo Universitario de Arte Contemporáneo (Muac) of the Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), as part of Jardín de Academus, an event organized and curated by Mexican artist José Miguel González Casanova. 

          This first auction, held in May, 2010, investigated the possibilities of assigning legitimized exhibition value to objects purchased in the tianguis of Mexico City. The lots included various other objects, not just those related to the field of imaging technique; what all had in common was having been acquired at humble second-hand markets and, perhaps, a certain affectionately kitsch appearance. On the museum wall, and on the red velvet exhibition table, there were children’s toys, knick knacks, glass jars; also picture frames, stereoscopic viewers, and framed photographs. 

          The auction was held on December 9, 2010, in the Biennial pavilion, after closing time, on the mezzanine, in an area adjacent to the cafeteria, whose chairs were used for seating. Auctioneer Aloisio Cravo climbed a small podium with an acrylic lectern and conducted the auction from there, showing the lots on a portable projection screen. Among the potential buyers were collectors like José Olympio Pereira, Dudu Linhares, Oswaldo Corrêa da Costa, and Bruno Musatti, as well as curators like Moacir dos Anjos, Marcelo Araújo, and Adriano Pedrosa. 

          In the catalogue, available in pdf format, each lot was identified by serial number. Also specified was the location where the objects were purchased (C.D.O.), the object cost (O.C.), the starting bid (S.B.), the hammer price (H.B.) the materials used, and the final dimensions. 

          LOT 24 
          CARTES DE VISITE WITH ENLARGERS 

          C.D.O. Santa Martha street market, Mexico City, Mexico  
          O.C. 30,00
          S.B. 150,00
          DIMENSIONS 20 × 30 × 3,5 cm            
          DESCRIPTION Two frames containing three b&w portraits (gelatin silver paper) chosen by the artist from a set of photographs from Mexico.

          The auctioneer pointed out several times during his presentation that he had never heard of an auction of lots from a single artist in Brazil, much less one of lots belonging entirely to the same installation, one that had been shown at the country’s most important art event, the São Paulo Biennial. 

          All lots were bid and sold in an atmosphere of great excitement (there was none of the mute tension seen at Christie’s or Sotheby’s). Auctioneer Aloisio Cravo announced that the works could be picked up starting December 13 at his office, and that his customary 5% fee should be added to the hammer prices. The Biennial was to end two days later, but the installation was dismantled the day after the auction. At that point, the work became complete. Its function, in the 29th São Paulo Biennial, had come to an end, and the space formerly occupied by its objects was deliberately left empty. 

          From the beginning of the work, when Rosângela Rennó and her friends purchased photographic objects in the street markets of various countries, until the moment when each collector left the auction house, their purchases carefully packed, nameplate and certificate of authenticity enclosed, a performance process took place about which many of those involved were unaware. 

          Because, as Greer said about the Hirst auction, the auction was the work. And the work looked a lot like life: the artist created, friends helped, assistants assisted, curators curated, the Biennial Foundation authorized, the auctioneer auctioned, collectors bought, and critics, as usual, did not critique. Like in a frightening display of déjà-vu in which, at every turn, the perceived and the remembered overlap and separate simultaneously, every- thing went according to script. Aloisio Cravo’s words, “there is no previous record, in Brazil, of an auction made up entirely of lots from the same artist”, were simultaneously true and false, because what nobody had seen before was the combined presence of collectors, curators and artists, inadvertently transformed into actors involved in an act; moreover, actors who performed their roles to perfection, despite the absence of a script. 

          Minus-Value [Auction] also exposes much of what the São Paulo Biennial conceals or subtracts. In the introductory text of the catalogue, the curators say that they avoided the model commonly found in contemporary art shows: “a model linked exclusively to the hurried demands of market and spectacle, marked by an anxious search for the allegedly unprecedented” (18). Rosângela Rennó, however, managed to bring the most radical expression of market avidity into Oscar Niemeyer’s pristine open spans. 

          We all know that the contemporary art market dominates the general art market and that, in recent years, the most spectacular sales have happened at auctions; in other words, in the traditional secondary market, where the criteria of taste, artistic value, and temporality are tested, and where the monetary value of the artist’s work is confirmed or questioned (19).

          What would be the point of presenting Minus-Value [Auction] at the São Paulo Biennial? An auction that is, at the same time, an artistic undertaking – I hesitate to use the word performance because it retains the initial meaning of representation – and a real auction? 

          In her introductory text, the artist declares that: 

          These objects undergo successive aggregations of material and symbolic value on their way to their final destination, to be determined on December 9th, 2010, when each will be auctioned in the pavilion of the Biennial itself. Upon purchasing an object, the buyer will receive a certificate of part owner ship in the project Minus-Value [Auction] and will be able to include it in his art collection. 

          In the field of ideas, Minus-Value [Auction] can also be understood as one of the contemporary practices most strongly linked to current theories of Ruinology, resembling “active recuperation transformation”, among others recently consolidated (20) 

          In the first paragraph, the author points out that the buyer of an object buys only part of the project. She maintains, openly, that the project remains hers and that, therefore, it will not belong, in its totality, to any art collection. Tongue-in-cheek, the artist alludes to a new discipline, “ruinology,” and one of its branches, that of “active recuperation transformation”. 

          Contemporary artists, like the Cuban Carlos Garaicoa, are laden with this melancholy feeling evoked by ruins; in his case, the unfinished and abandoned buildings of Havana, after the decline of European socialism. The ruins of the utopian project – not the ruins of a luminous past, but of a future that did not happen – are evoked by Garaicoa as “ruins of the future”. 

          Garaicoa’s paradox – which seems to allude to Cuban poet Nicolás Guillén’s quip upon first setting eyes on Brasilia: “I behold, astonished, the ruins of the future” – shifts, to the future, the notion of ruin, something heretofore understood as a remnant of the past. 

          In the Renaissance, the architectural remains of ancient civilizations acquired the status of witnesses, still living, of more glorious times. Earlier objects and their fragments, without meaning or function, were invested with the aesthetic, political or historical values of the present. Ruins disturb because they announce the imminent loss of meaning that threatens every human work; but this failure of significance transforms itself into a vertiginous discursive proliferation. Rosângela Rennó’s ruins are remnants of a relatively recent past, of a modern life that still seems to exist and flourish, though increasingly degraded, in the poorer neighborhoods of our opulent cities. What moves the artist is a melancholy feeling, one that does not rejoice in the lost but accepts it, and renders it productive. 

          Rosângela Rennó’s objects raise questions about their origins; they are sites for reflection strategies that can tell us more about those who look than about what is being looked at. 

          By sarcastically naming the operation “minus-value,” Rosângela Rennó appears to conceal the unavoidable power of value added: 

          LOT 20 
          POLAROID BICHO

          C.D.O. Santa Martha Street market, Mexico City, Mexico       
          O.C. 85,00
          S.B. 170,00
          DIMENSIONS 18×30×11 cm            
          DESCRIPTION Two identical Polaroid Sx 70 Land cameras, joined together. One was purchased in Rio de Janeiro and the other in Mexico. 

          In this lot, the two Polaroid cameras cost R$ 85,00; after adding the cost of labor, the adhesive tape, and the acrylic plate and chain, the initial bid was set at R$ 170,00. The price realized at the auction came to almost four hundred times this value. The exhibition at the Biennial, the unprecedented auction, the prestige of Rosângela Rennó in the international art system, a timely allusion to Lygia Clark’s Bichos, and even a degree of visual kinship with some of them, not necessarily in that order, increased the value added to the object. 

          But can one still talk about added value in the complex context of the market for sumptuary objects (unique, rare, exclusive), including art objects? This field is regulated by a particular relationship of supply and demand, since the monetary value that such objects attain depends almost exclusively on their symbolic value, associated with exclusiveness, on the desire to possess them, and the sub- sequent prestige, attached to the ability to purchase and display them. 

          Rosângela Rennó reveals and presents market mechanisms, in an exhibition characterized by works that, according to the curator, do not obey “the hasty demands of the market and of spectacle” (21). Other works present in the same Biennial fulfill this intention, works from the 1960s and 1970s, like Tucumán arde, La familia obrera, the actions of Grupo Cada, or Artur Barrio’s situations, ephemeral works of which only contemporaneous records remain. 

          The manner in which Minus-Value [Auction] was shown was appropriate to the market: a display of objects that would be (and were) acquired by the highest bidder. This strategy of exhibition shows the audience (but, what audience?) how cultural industry leftovers can be raised to the category of art- works. The artist declares, through her installation and subsequent action, that, by losing its functional value, ordinary and insignificant things can achieve not only a powerful and enduring character but also, by means of the legitimacy granted by the institution of art, an elevated monetary value. 

          CODA 

          The significance of insignificances is entirely concentrated in the evocative charge that these objects manage to conserve, in their displays, inside their boxes, outside the auction. Lot 72, My Life through Portraits, purchased in the Rio de Janeiro Praça XV flea market, contains, in a simple black frame, “an album without a cover, very complete, about a singular woman” (22). What we see, through the glass, is exactly that, and only that: a coverless album, the first page quite tattered, its leaves tied with a bright ribbon of synthetic material. The only visible page shows three photographs: in one we see a little girl standing on a chair; in another, two girls with big bows in their hair: one sitting, the other standing on the same bench, holding a doll by the leg. The photograph of a young lady – the singular woman? – at the beach, one foot poised over a ball, overlaps the other two in the center of the page. If the photos are of the same woman, more than ten years must have passed between the first and the last. On the gray paper of the old album there are different handwritings: “My Life through Pictures” appears on the page header, written in an ornate calligraphy. Under the photo of the girl, written in a different hand, there is “Españ (R”, the rest of the caption is hidden by the picture of the young lady. Below the picture of the two girls, the same hand wrote “Brazil (Rio de Janeiro) 3 años”; but the singular woman corrected the caption and added, in ink of a different color, “/ 4” next to the number 3. The picture of the slender young lady at the beach was overexposed, so that her body, from the waist up, is blurred by sunlight. 

          Here are the clues for a story that begins in Spain (Restabal, Riaño, Rioja, Rioscuro, Rodalquilar,?) and continues in Rio de Janeiro; these are the clues to begin to imagine the hands that put together the album that began in Spanish and continued in Portuguese: female hands, no doubt, affectionate hands. In Minus-Value [Auction] the album is no longer about the life of a singular woman, but about the singular life of many immigrant women. The remains of a life that could well end up in the trash, or in the flea market at praça xv, are now redirected to a collection, after passing through the halls of the 29th São Paulo Biennial. 

          Baudelaire’s rag-picker, again, overlaps the image the artist; Rosângela Rennó, bringing together images and objects that have lost all use value and nearly all exchange value, recombines them, makes them unique, and delivers them to another sector of the market. The strategy that operates in the construction of Minus-Value [Auction] – recollection, assembly, exhibition, auction, and dispersion – exposes the mechanisms of production and alienation of cultural goods. 

          In this never-ending process – between melancholy and cynicism – Rosângela Rennó proposes precious enigmas and obscene do it yourself kits for us to assemble.


          1. Walter Benjamin, “Surrealism: The Latest Snapshot of the European Intelligentsia”, in One- way Street and Other Writings. London: Penguin Classics, 2009, p. 148.
          2. Id., ibid., p. 148.
          3. Cf. Hal Foster, “This Funeral Is for the Wrong Corpse”, in Design & Crime. London: Verso,2002, p.139. 
          4. Charles Baudelaire apud W. Benjamin, Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79.
          5. Firmin Maillard, La Cité des intellectuels, Paris, 1905, p. 362. Apud W. Benjamin, Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 227. 
          6. W. Benjamin, Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79. 
          7. 7 H. Foster, op. cit, p. 67. 
          8. A moat where the dictator raised lions and, it was said, threw his opponents. 
          9. “Miguelito” was the popular River Plate name for large nails bent in half and soldered cross-wise, strewn in the streets to puncture police car tires. 
          10. <www.memoriaabierta.org.ar/vestigios>. 
          11. <www.memoriaabierta.org.ar/vestigios/objeto.php?id=81>. 
          12. Dicionário Eletrônico Houaiss
          13. Id., ibid. 
          14. <www.thinkfn.com/wikibolsa/Menos-valia>. 
          15. Pequeño Larousse Ilustrado
          16. Germaine Greer, “Note to Robert Hughes: Bob, dear, Damien Hirst is just one of many artists you don’t get”. The Guardian, 9 / 22 / 2008. 
          17. Id., ibid. 
          18. 29a. Bienal de São Paulo (catálogo). São Paulo: Fundação Bienal, 2010, p. 21
          19. Terry Smith, What is Contemporary Art? Chicago: The University of Chicago Press, 2009, p. 119. 
          20. Presentation text for Minus-Value [Auction] by Rosângela Rennó. Wall text for 29th São Paulo Biennial. 
          21. 29a. Bienal de São Paulo (catalogue). São Paulo: Fundação Bienal, 2010. p. 21. 
          22. Online catalogue of Minus-Value [Auction].


          MELENDI, Maria Angélica. Do it yourself kits. In RENNÓ, ROSÂNGELA. Menos-valia [leilão]: Rosângela Rennó. São paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 228-265.